Era uma vez Sergio Leone

Atualizado em 21 de novembro de 2012 às 20:33

O Diário presta homenagem ao grande gênio do cinema italiano que inventou o western spaghetti

Leone com Clint Eastwood

Ouvi no meu iPod o tema de Era Uma vez na América, o grande filme de Sergio Leone, o gênio italiano do cinema. O autor do tema é Enio Morricone, outro gênio italiano. É uma melodia que me comove, e simplesmente lembrar do filme me faz suspirar fundo. Leone foi o mestre, o inovador dos focos dramáticos em rostos dos personagens, sobretudo olhos, sob o som sublime dos temas de Morricone.

Para mim, Leone foi um caso de amor à primeira vista, ou semivista. Vi, em Ribeirão Preto, Quando Explode a Vingança, de Leone, a história de dois amigos improváveis, um bandoleiro mexicano e um terrorista irlandês, durante uma tentativa de revolução popular no México. Era a última sessão de cinema, e como é linda e triste essa expressão, última sessão de cinema, e eu dormi a maior parte do tempo. O que vi, porém, foi suficiente para eu sair daquele cinema de Ribeirão outro cara.

Vi Era uma vez na América, a obra magna de Leone, pela primeira vez numa cópia precária na qual prolongados minutos não tinham som. Fui arrebatado. A cena final. O reencontro entre dois amigos, muitos anos depois. Eles tinham se amado tanto na juventude. Eram amigos como Montaigne define a amizade, uma união entre duas almas tão perfeita que você sequer nota a costura. Compartilharam coisas que criam laços poderosos entre homens: cresceram juntos, aprenderam a beber e a amar mulheres juntos, começaram a carreira – de ganguesteres – juntos.

Não foi um reencontro feliz. Um deles, o personagem interpretado por Robert de Niro, fora traído. O traidor fingiu que morreu num assalto feito pela quadrilha que ambos comandavam. Levou o dinheiro todo, deixou o amigo com a tristeza imensa de uma morte que não acontecera afinal, e ainda surrupiou a mulher devotadamente amada pelo homem enganado. O traidor (James Woods) olha para o grande amigo com a esperança de que a memória do tempo em que se amavam tanto dissipe a mágoa, a desilusão, a dor aguda e penetrante da traição. Não. E então a câmara dá um foco perturbador, e eis Leone no seu prime time, no rosto, nos olhos, na expressão de de Niro, sob a melodia tristemente bela de Enio Morricone. “Uma vez conheci um cara, e ele era o melhor amigo que alguém poderia ter”, diz o homem traído. “Mas ele morreu.” E ele vai embora.

Tantas vezes, com mulheres ou com amigos, como amigos ou como amantes, traímos alguém e, como o personagem de James Woods, esperamos pelo milagre do perdão, como se o que fizemos para destruir coisas como fé, confiança pudesse ser amortecido ou mesmo neutralizado sei lá pelo quê.

Mas é um esforço vão, e vão, e vão. A vida nos impõe preço para tudo, para cada um dos nossos atos, e não há como regatear. Um dos preços mais altos, como viu o amigo infiel de Era Uma vez na América, é aquele que pagamos por trair quem um dia acreditou, confiou em nós. Na verdade dificilmente perdoamos a nós mesmos nestas situações. E então me ocorre uma frase de Graham Greene, meu romancista amado. “Esquecemos os que os que amamos, mas não esquecemos os que traímos.”

Este texto foi publicado no Diário do Centro do Mundo em 03 de agosto de 2012.