Esquerda, cadê a esquerda? Apontamentos para um debate necessário. Por Emir Sader

Atualizado em 24 de maio de 2020 às 16:58
O Brasil melhorou com a democracia e é preciso retomar a dianteira

A esquerda passou a ser protagonista fundamental da politica brasileira desde as eleições de 1989. Primeiro, como a grande forca de oposição aos governos neoliberais, depois como a força dirigente dos governos mais virtuosos da historia brasileira. Foram 30 anos decisivos na historia brasileira.

Desde a preparação para o golpe de 2016, o cenário politico brasileiro mudou muito. A iniciativa passou para as mãos da direita, que reimpôs não apenas o modelo neoliberal, como a agenda nacional correspondente.

Durante o governo Temer, mas especialmente no governo Bolsonaro, a esquerda foi perdendo iniciativa, encolhendo, pronunciando-se em torno de conflitos dentro do bloco de direita, de suas contradições internas. O centro do cenário politico passou a ser ocupado por essas contradições, com protagonismo da mídia tradicional e de setores que romperam com o governo.

A esquerda foi se escanteando, se isolando dos grandes temas nacionais. Se unificou, finalmente, em torno da questão do impeachment de Bolsonaro, mas não tem forcas próprias para impô-la.

Não basta a consciência da necessidade de uma ampla frente de forças democráticas, se não se consegue definir as questões que podem convocar e unificá-la. É absolutamente equivocado acreditar que a ideia de frente antifascista tem esse potencial de convocação. Em um país como o nosso, que nunca viveu regimes fascistas, como na Europa, o fascismo não está arraigado na consciência do povo. Temos, sim, que arraigar a ideia de democracia, de que as grandes conquistas populares se deram na democracia e pela democracia. E que a democracia permite que a maioria imponha seus interesses. Ja teremos avançado muito na consciência politica do povo brasileiro.

E diante da questão mais grave que o Brasil vive, que o governo subestima, a da pandemia, a esquerda não tem grandes propostas, nem protagonismo central. Uma lista de medidas para um momento como este é necessária, mas não suficiente para agitar o debate nacional e ajudar para torná-lo o tema mais importante do país hoje.

Diante da militarização do Ministério da Saúde, a esquerda deve contrapor uma alternativa centrada no extraordinário setor de saúde publica, que tem demonstrado sua capacidade de atuação, assim como nas instituições publicas, universitárias e de pesquisa. Deve propor nomes competentes, para demonstrar que o setor de saúde publica no Brasil tem plenas condições de dirigir o Ministério da Saúde.

A esquerda deve defender a esfera publica, em todos os seus planos, e contra a esfera mercantil. A mercantilização é a privatização dos bens públicos. O fortalecimento da esfera publica é o fortalecimento da democracia.

Esse aspecto faz parte de uma teoria contemporânea da democracia – em tempos de guerras híbrida -, que a esquerda deve elaborar. A restauração da democracia é o objetivo maior da esquerda no Brasil hoje. Somente na democracia, será possível eleger um governo legítimo e capaz de reverter o modelo neoliberal.

Decisivo no embate político é ter iniciativa, impor sua agenda e disputar hegemonia no plano das ideias e da força politica. Responder às iniciativas das forças de direita situa a esquerda na agenda da direita. Os temas do Brasil de hoje giram em torno das iniciativas do governo.

A direita conseguiu reverter o clima político e ideológico do sucesso dos governos do PT. Hoje as pesquisas apontam para responsabilidades do PT na crise atual, vinculam o partido à corrupção, impõe o ajuste fiscal como centro da política econômica. Mas o fracasso dos governos Temer e Bolsonaro e a crise atual – de saúde pública, econômica e política -, dão uma nova oportunidade à esquerda. Que pode se valer do fortalecimento da imagem do Estado, do SUS, das universidades públicas e dos centros públicos de saúde, da ciência, em detrimento do mercado, da saúde privada, da educação privada, da religião, para disputar a direção da reconstrução nacional.

Para isso, tem que se adiantar no levantamento da situação em que o Estado brasileiro, a sociedade, a economia, a educação, a saúde, a cultura, as condições de trabalho, sairão na saída da pandemia. E propor um programa de reconstrução nacional, que retome o modelo de desenvolvimento econômico com distribuição e renda. Esse novo clima permitira voltar a reverter a disputa de ideias na sociedade, eixo fundamental que antecede as grandes transformações politicas.

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Publicado originalmente no Facebook do autor.