Esquerda limitada, extrema direita avançando: um mundo à deriva. Por Marcos Nunes

Atualizado em 10 de março de 2018 às 19:35

Entre outros, o filósofo esloveno Slavoj Žižek afirmou algo que muitos percebem, por óbvio: no mundo democrático ocidental, quando um partido de esquerda vence eleições, sua missão, posta pelo mundo corporativo financeiro, passa a ser a mesma de qualquer partido de direita, isto é, administrar as crises do capitalismo, sendo mais fácil à esquerda implementar programas antipopulares justamente por… contar com o apoio popular.

Obviamente, por executar um programa quase inteiramente ao avesso (se não inteiramente) ao seu programa, e principalmente às promessas eleitorais, o partido de esquerda (ou que se diz à esquerda) cai em descrédito. Um caso notável, e recente, é o de François Hollande que, no governo, desempenhou o mesmo papel que a direita desempenharia no governo, submetendo-se aos imperativos do capital.

Isso abre a perspectiva da extrema-direita, fundada em um pretenso nacionalismo, e mais pretensa ainda proteção dos “legítimos” integrantes da nação contra a razia do mercado financeiro e, principalmente, contra os imigrantes. De um lado, uma política dita “racial” de caráter xenófobo; do outro, uma hipócrita denúncia dos males do capitalismo financeiro, que nada faz, na verdade, para mitigar.

A citação de Hollande não foi gratuita. Este texto se inspira no filme de 2017, À la derive, dirigido por Philippe Venault, diretamente para a televisão.

Trata-se de obra engajada, que tem a força de um manifesto, de um panfleto, contra o avanço da extrema-direita na França, que se deu nos últimos 15 anos (recordemos que Jacques Chirac só se elegeu para o período 2002/2007 depois de contar com o apoio da esquerda, diante do mal maior que seria a eleição de Jean-Marie Le Pen, do partido Frente Nacional, de extrema-direita), a partir de um olhar local: a pequena cidade (fictícia) de Villefrance, obviamente denominada para exemplificar um fenômeno que se estende por todo o país: primeiro, o fracasso da esquerda representada por Hollande; depois, o avanço da extrema-esquerda, hoje capitaneada por Marine Le Pen, presenteada por Hollande com vastos setores da classe média-média e baixa francesa, em razão das más políticas, ou ausência de boas políticas, tocadas pela esquerda representada pelo Partido Socialista francês (há o partido Comunista mas, como no Brasil suas chances de êxito são sempre diminutas; lá, como aqui, a população é rançosamente conservadora).

Não esqueçamos que, nas últimas eleições presidenciais francesas, mais uma vez a extrema-direita foi ao segundo turno, sofrendo derrota com a repetição do apoio da esquerda para Emmanuel Macron, conservador e de direita, não por acaso ministro do malfadado François Hollande, e a bordo de um “partido novo” – lá como aqui, mais uma vez, uma sigla é lançada para representar a renovação da política, mas traz os mesmos velhos programas sob a roupagem de uma juventude que não apenas nasceu velha, como é o caso de Emmanuel Macron, que, menos por acaso ainda, tem fixação amorosa por mulheres mais maduras, tendo por esposa Brigitte Macron, 24 anos mais velha que ele.

Voltemos ao filme: nele, um operário, que começa liderando uma greve contrária ao fechamento de uma empresa local, que fabrica bolsas e malas, visando manter dezenas de empregos, protegendo a economia da cidade, apoia, para o governo da municipalidade, um candidato de esquerda, que vence as eleições, prometendo amparo à causa e continuidade da empresa, à revelia das intenções patronais de transferir a fábrica para a China – isto para produzir os mesmos itens com um custo reduzido em apenas 50 centavos por peça.

Cabestany, o candidato da esquerda, vence as eleições, mas a greve fracassa, bem como qualquer gestão do prefeito a favor da manutenção da fábrica, segundo ele, por impossível vencer as ordens que partem de Bruxelas, isto é, do governo central da Comunidade Econômica Europeia. Resta a resignação diante da derrota para o prefeito, derrota essa menos trágico pois, afinal, ele vencera as eleições.

Ao líder operário, Jêrome, restará o desemprego, o casamento com Audrey em risco (incialmente por questões apenas econômicas, que se desdobram em crise existencial e depressão), e a amizade com Driss, argelino que partilhou com ele os estudos, e que agora é desenhista talentoso, que ilustra livros infantis e charges políticas.

Com o casamento desfeito depois de reagir com violência a uma brincadeira desastrada do filho (a esposa Audrey tem no passado más lembranças de violência doméstica pelo pai, um homem conservador que, mais adiante, se aliará à extrema-direita, depois de ter apenas votado a favor dela nas últimas eleições), Jêrome vai morar, provisoriamente, com Driss, que, anteriormente, abandonara junto com ele um emprego de segurança de supermercado, depois que um gerente racista admoestou o argelino por suas características étnicas.

Desiludido com a esquerda local, Jêrome é seduzido pela extrema-direita, que lhe conseguir um emprego de operário da construção civil, permitindo-lhe pagar dívidas e alugar imóvel próprio. Apoia a candidatura do político de extrema-direita local nas eleições seguintes, vencida por ele, subindo, então, à condição de conselheiro municipal.

Defende o partido por ele ter, supostamente, abandonado a plataforma racista, com foco em segurança e gestão econômica (mais uma vez a exemplo do Brasil, a extrema-direita francesa avulta a insegurança pública causada pelo desemprego, este sob a responsabilidade principal do universo das finanças, seduzindo a população contra os inimigos mais visíveis, enquanto, por outro lado, aproveita-se do Estado para obter vantagens pessoais, incluídas as propinas destinadas a paraísos fiscais, tudo sob o álibi de um nacionalismo tão extremado quanto mentiroso, mais uma vez, o nacionalismo como último refúgio do canalha).

O caminho trilhado por Jêrome, de operário engajado e simpatizante da esquerda (sem atuação partidária, contudo), para militante e inocente útil para uma extrema-direita que usa o lumpemproletariado como massa de manobra para atingir seus fins de poder, também repete o de muitos brasileiros desencantados com a esquerda, e que rumaram para a absurdidade que é a figura pública, política e individual de algo canhestro como Jair Bolsonaro, cujos objetivos são os mesmos desde que ingressou no universo da política institucional: adquirir privilégios e renda além de suas possibilidades intelectuais (pois trata-se de um tosco, sem qualquer qualificação).

Por fim, trilhando o caminho inverso de sua própria existência, ainda que acidentalmente, Jêrome mata seu velho amigo Driss que, também, nesse meio tempo, havia encetado relação amorosa com Audrey (o casal, também em meio ao caminho de Jêrome da esquerda para a direita, havia se divorciado).

A lição explícita do filme, ao final, se dá quando Jêrome, aguardando, preso, seu julgamento, recebe visita do filho (que há pouco havia também sido manipulado pelo prefeito de extrema-direita, forjando uma falsa acusação de tráfico de drogas pelo assassinado Driss, reforçando o preconceito contra árabes, por ingressos, fatidicamente, no universo da criminalidade), incitando-o a estudar. “Aprenda!”, repete ele ao filho, obviamente para que ele não repetisse seus próprios erros e não caísse na sedução da extrema-direita.

Aprender com a história, reconhecer a verdade encoberta pelas aparências, não se deixar enganar e seduzir tão facilmente por um canto que parece ser de um sabiá, mas, quando se chega perto, vê-se uma ave de rapina.

Nisso estamos, não apenas no Brasil (vivo repetindo isso), mas no mundo inteiro: populações que não encontram, na esquerda, força e representatividade o bastante para continuar a apoiando e dela fazendo parte cedendo aos argumentos xenófobos da extrema-esquerda, ao anticomunismo feroz, ao anticapitalismo de fachada, sem perceber que os objetivos dessa linha política em nada coadunam com os interesses dessas populações, e que, na verdade, tem por aliados verdadeiros o próprio universo das finanças, dos proprietários dos meios de produção, que pagam por suas campanhas políticas e garantem sua existência em alto padrão burguês.

Ratificando o quadro semelhante ao francês, no Brasil corre-se o risco de, em havendo eleições para presidente em 2018, nos vermos diante de um candidato de extrema-esquerda ter, no segundo turno, um candidato de direita. Ao menos isso é que, embevecidos, projetam os líderes da direita brasileira (isto é, o PSDB, que de social-democrata não tem sequer o verniz), segundo o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad.

Que esse quadro não chegue à parede, pois nos trará muito mais do que apenas dor.