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Bachelet sobre descaso com direitos humanos no Brasil de Bolsonaro: “É grave”

Michelle Bachelet. Foto: Divulgação

Alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para Direitos Humanos e ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet deixa o cargo na próxima semana depois de quatro anos denunciando as violações em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

Em entrevista exclusiva ao UOL antes de sua despedida do cargo, em Genebra, a ex-presidente alertou sobre os riscos que a democracia enfrenta e criticou o presidente Jair Bolsonaro (PL). Bachelet entende o Brasil como um exemplo de eleições limpas, cujos ataques ao sistema eleitoral não fazem sentido. Confira os melhores trechos da entrevista: 

No Brasil, estamos em plena campanha eleitoral no país. Até que ponto essa eleição é importante. Está em jogo algo maior?

O Brasil é um país muito importante no mundo. Historicamente, ele tinha desempenhado um papel importante para ser uma voz forte para apoiar a voz de todo o resto da América Latina. E essa voz fez falta. Esse guia que, no mundo, tinha sido uma postura muito importante do Brasil, tratando de incidir para que os países em desenvolvimento pudessem ter melhores oportunidades e que fossem escutados. E não vimos isso nos últimos anos.

Do ponto ponto de vista do mundo e da região, (o desejo) é que o Brasil possa ter um futuro governo – obviamente democrático – que não apenas atenda às aspirações do conjunto dos brasileiros para que tenham seus direitos incentivados e protegidos. Mas que possa jogar um papel internacional muito necessário e sentimos falta.

Sabemos que há uma polarização política durante as eleições. É natural que os partidos apresentem seus planos de governo, que possam criticar um programa diferente de governo. Mas tudo isso deve ser feito num clima de respeito, de entender que a democracia implica olhar ao outro como um adversário político. Mas não como um inimigo do país ou inimigo da pátria.

Precisa haver um debate substantivo. E não exacerbar o ódio contra os outros ou cair em estigmatização pessoais. É muito grave quando um chefe de estado, com um discurso violento, incentiva aos seus apoiadores a manifestar contra o Judiciário, contra o sistema eleitoral.

O Brasil é um país que, em geral, deu mostras que é um país que respeita, que tem eleições limpas e transparentes. Nunca foi questionado fundamentalmente por isso. Não se justifica esse tipo de crítica. Mas incentivar a marchar contra outro poder de estado? Você pode discordar de um outro poder. Mas fazer isso não faz bem à democracia. Pode aumentar a violência, como já vimos em outras partes do mundo (…)

E isso pode abrir uma caixa de Pandora para um momento pós-eleitoral?

Depende do país. Mas é por isso que é chave que os líderes que foram eleitos possam levar uma voz de calma e tranquilidade em todo o processo. Não vimos tanto isso na América Latina, mas em outras partes vimos violência sexual, assassinatos e ataques. E isso é muito grave e pode ser prevenido se os líderes políticos são capazes de manter um tom adequado e um discurso que não incita o discurso de ódio e violência. Mas um discurso que permita definir a diferença entre as pessoas e que, portanto, todos os brasileiros possam ir votar com tranquilidade e fé. Que sua opção (política) não vai colocá-lo em risco. A paixão faz parte, principalmente no Brasil. Mas disso pensar que possa se transformar em violência, é algo muito grave (…)

A senhora faria algum apelo ao Brasil neste momento?

Eu faria um apelo para que todas as pessoas responsáveis, no governo ou não, todos os candidatos e partidos, possam realizar um processo eleitoral legítimo, de uma maneira serena. Com entusiasmo e paixão.

Mas fazendo todo o possível para evitar o discurso de ódio, evitando incitar a violência e evitando incitação aos outros problemas, como racismo e discriminação contra os mais pobres. Trata de ser uma campanha democrática. E democrática quer dizer tudo isso junto.

Nos últimos anos, vemos líderes com perfil autoritário usando os instrumentos de democracias para chegar ao poder. Hoje, a democracia está ameaçada por esse fenômeno?

A democracia hoje não apenas está desafiada por pessoas que foram eleitas por uma via democrática, mas que usam, uma vez no poder, uma forma de relação com a sociedade autoritária. Sem abertura ao diálogo e sem consultas para entender as demandas das pessoas. Muitas vezes, com respostas que utilizam a força diante de protestos pacíficos. Ou tentar passar leis que restringem os espaços democráticos, a liberdade de imprensa, usando desculpas como a pandemia e o terrorismo.

Esse é o único elemento de crise da democracia?

Há outro aspecto. Antes da pandemia, vimos mais de 80 países com manifestações. As pessoas estavam nas ruas, por diferentes temas, pelo déficit de direitos sociais e econômicos, as condições de vida, altos preços de alimentos. Isso, inclusive, estamos voltando a ver agora com a guerra na Ucrânia e que vai levar a muitos protestos sociais. A inflação vai colocar as pessoas em dificuldades.

Vimos a falta de credibilidade das instituições. Não apenas dos líderes eleitos. Mas também o questionamento sobre o Poder Judiciário, sobre a polícia, a toda a estrutura da sociedade. Para essas pessoas, a avaliação era de que a democracia não estava entregando os resultados que se esperavam, em termos de melhoria de vida.

A democracia não é apenas eleger pessoas. Mas como as pessoas eleitas garantam uma melhoria de vida. O que ocorreu é que, para muita gente, perdeu-se a credibilidade na política e nas instituições. Não há resposta à impunidade, as pessoas nem sempre tem acesso à justiça. Portanto, há um questionamento global sobre a democracia. Não apenas pelo uso autoritário de alguns líderes, mas pela falta de resultados.

De que forma?

As pessoas se perguntam: faz diferença mesmo votar? Não vai melhorar minha vida? Ou dizem que um político, uma vez superada a eleição, se esquece das pessoas. A realidade é que as pessoas hoje esperam mais da democracia. Não basta apenas votar. Mas fazer parte da tomada de decisão, de ser informado. Isso pode ser no âmbito local ou nacional. Há uma crise da democracia. Há ainda uma falta de confiança no sistema econômico, já que, da forma que está, não vai gerar melhorias à vida das pessoas.

Antes mesmo da pandemia, a diferença entre pobres e ricos aumentou. Agora, tivemos uma pandemia e uma guerra que atingiu ao mundo todo com a inflação. Muitos países achavam que, com a pandemia sob controle, poderiam recuperar suas economias. Mas estão sendo fortemente afetados.

Portanto, os líderes precisam levar em consideração tudo isso. Mas, para isso, esses mesmos líderes não podem colocar em questão as instituições, não as distribuam. Mas que as fortaleçam.

Ainda não vimos todas as consequências da guerra e teremos de pensar em como dar uma resposta a isso, da mesma forma que houve uma resposta à pandemia, ajudando as pessoas e principalmente os mais vulneráveis.

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