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Brasil Fora do Mapa da Fome (de Novo): O Que Isso Nos Ensina?

O presidente Lula – Foto: Reprodução

Por José Graziano da Silva, no IFZ

A edição de 2025 do relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI), lançado em 28 de julho em Adis Abeba, confirmou oficialmente o que já vínhamos observando nos últimos dois anos: o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome (MdF) da FAO. A prevalência de subalimentação no país (medida pelo PoU – Prevalence of Undernourishment) caiu para 2,4% no triênio 2022–2024, abaixo do limiar de 2,5% estabelecido pelas Nações Unidas.

Mas o PoU não é o melhor indicador para definir se o país está ou não no MdF, pois sofre de falta de dados atualizados, principalmente para o parâmetro do coeficiente de variação da distribuição dos alimentos, que depende da distribuição de renda no país, a qual nem sempre está disponível anualmente. Por isso, há necessidade de fazer atualizações periódicas na série quando essas informações são disponibilizadas, como ocorreu este ano. Além disso, o PoU é um indicador único, agregado a nível nacional, o que, para um país como o Brasil, com profundas disparidades de renda em sua população e entre suas regiões, termina por não dizer muita coisa.

Por essas e muitas outras razões, cada vez mais se usa o indicador de insegurança alimentar (INSAN), medido pela escala FIES, similar à nossa EBIA (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar), que se baseia numa pesquisa de campo realizada nos países-membros da FAO todos os anos.

O fato extremamente positivo é que, em 2024, a prevalência de insegurança alimentar moderada + severa na população brasileira caiu abaixo de 10%, tal como já havia acontecido em 2014, quando o país saiu oficialmente do MdF pela primeira vez; e a insegurança alimentar severa afetou apenas 1% da população, tal como também aconteceu em 2014!

Esse dado não apenas fecha um ciclo de reconstrução institucional iniciado pelo terceiro governo Lula, em 2023 — como também nos obriga a olhar para trás e refletir sobre as lições aprendidas (e não aprendidas).

Tenho memórias vívidas daquele setembro (foto), quando entreguei em mãos à presidenta Dilma Rousseff, durante a Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, o reconhecimento oficial de que o Brasil havia erradicado a fome, de acordo com os critérios internacionais vigentes. O país cumpria ali, com dois anos de antecedência, a meta de reduzir à metade a fome estabelecida pelos Objetivos do Milênio (ODM). Era o auge de uma década virtuosa: o Fome Zero havia se tornado política de Estado, o Programa Bolsa Família consolidava-se como modelo internacional de transferência de renda condicionada, e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) havia retomado seu protagonismo participativo.

A ex-presidenta Dilma Rousseff – Foto: Reprodução

Mas a história não seguiu em linha reta.

A partir de 2016, com o desmonte gradual das políticas sociais, incluída a de combate à fome, iniciou-se um ciclo de retrocesso que se aprofundou no governo Bolsonaro. O fechamento do CONSEA em 2019 foi mais do que um ato simbólico: foi a tentativa explícita de apagar da institucionalidade brasileira o princípio de que comer é um direito de todos — e não uma dádiva. Vieram ainda os cortes no orçamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o desmonte da merenda escolar em meio à pandemia, e o desmantelamento das redes de apoio à agricultura familiar. O resultado? O Brasil voltou ao Mapa da Fome antes mesmo da pandemia — um retrocesso trágico!

Se hoje o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome, é porque resistiu. A forte presença da sociedade civil não deixou a política de Estado de combate à fome, inscrita na Constituição desde 2010, ser enterrada. Redes como a da Articulação do Semiárido (ASA) e PENSSAN, as Frentes Parlamentares de Combate à Fome e as universidades, as cozinhas solidárias organizadas por movimentos sociais e as redes de bancos de alimentos, entre muitos outros — todos esses atores sociais mantiveram acesa a chama das boas práticas e da solidariedade organizada.

A eleição de um novo governo Lula em 2022 reabriu a janela de oportunidade de reconstruir políticas públicas baseadas em direitos. O CONSEA foi restaurado logo no início de 2023, o Bolsa Família foi reestruturado, o PAA foi relançado; e o Plano Brasil Sem Fome voltou ao centro da estratégia do governo federal. Com isso, conseguimos, em apenas dois anos, inverter a curva de crescimento da fome e sair novamente do Mapa.

Mas não podemos repetir o erro de 2014: confundir ponto de chegada com ponto final.

Voltar a sair do Mapa da Fome é uma conquista, mas está longe de ser suficiente. Os dados do SOFI 2025 também mostram que ainda 28 milhões de brasileiros têm um grau de insegurança alimentar moderada (aquela que compromete a qualidade da alimentação) ou severa (aquela que compromete a regularidade de comer todos os dias). Não bastasse isso, o SOFI 2025 aponta que quase um quarto (24%) da população não consegue pagar por uma dieta mais nutritiva que inclua frutas, verduras e legumes. Isso significa que 50 milhões de brasileiros e brasileiras não têm dinheiro suficiente para consumir uma alimentação saudável, segundo as estimativas apresentadas pela FAO.

Como consequência direta disso, o SOFI 2025 mostra que 46 milhões de brasileiros já tinham sobrepeso em 2022; e mais de 20% da população brasileira adulta está obesa, e quase 60% apresenta sobrepeso — proporção que vem crescendo ano a ano. As mesmas políticas que ajudaram a reduzir a fome não foram capazes — ou não tiveram o respaldo político — para enfrentar o avanço dos alimentos ultraprocessados, da publicidade enganosa, da monocultura alimentar imposta pelos atuais mercados de alimentos.

Essa omissão do Estado — não só do governo de plantão — tem consequências graves para o nosso futuro. A obesidade infantil cresce, doenças crônicas não transmissíveis pressionam o sistema de saúde, e os custos sociais e econômicos da má nutrição se acumulam nos maus aprendizados das nossas crianças e na baixa produtividade dos nossos trabalhadores, além da maior exposiçao as doenças e enfermidades. Em 2025, como em 2014, vencemos a fome com políticas públicas. Mas ainda não enfrentamos de forma integrada a agenda da alimentação saudável!

A boa notícia é que nunca estivemos tão preparados para fazer isso. A nova Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, lançada com apoio do Brasil e de paises do G20, parte do princípio de que é preciso atuar com uma cesta de políticas públicas articuladas, intersetoriais, sustentáveis. Se queremos ajudar a combater a fome e a má nutrição no mundo, temos que dar o exemplo em casa. A alimentação saudável no Brasil precisa ser tratada como eixo de uma política de Estado permanente.

Já sabemos que não podemos mais permitir que a fome volte — nem que a má nutrição continue invisível. A história recente do Brasil mostra que é possível reverter tragédias quando há vontade política e ação coletiva com ampla participação da sociedade organizada. Que o reconhecimento que o SOFI 2025 nos traz agora seja o início de uma nova etapa — mais ambiciosa, mais justa e mais completa — de combate à fome e a todas as formas de má nutrição.