Caetano pede perdão a Roberto Carlos em sua coluna

Em sua última coluna no jornal O Globo, Caetano falou de sua amizade com Lou Reed e pediu desculpas a Roberto Carlos, a quem havia dedicado algumas bambuzadas no artigo anterior.

Só entrei em contato com a música do Velvet Underground em Londres. Talvez já em 1970. Embora seja possível que Artur e Maria Helena Guimarães já me tivessem mostrado o disco com Nico, de 1967, que depois Ezequiel Neves vivia pondo pra tocar em nossas vitrolas. Eu gostei imediatamente do tom sombrio e violentamente urbano das canções e dos sons, a voz e a figura de Nico, que eu já conhecia de “La dolce vita”, somando-lhes mistério e encanto. A cara dessa loura de Fellini em meio aos filmes underground de Andy Warhol compunha um ambiente estético fascinante, o que tingia a música da banda de uma qualidade diferente de tudo o que a gente já gostava no mundo do rock de língua inglesa. Lou Reed apareceu para mim ali, no centro dessa aventura criativa tão estranha ao mundo meio rural, meio onírico do rock pós-Beatles.

Lou Reed morreu. Quando penso em quão longe eu estava de poder captar a beleza de sua arte em 1970 (capacidade que se desenvolveu lentamente e exigiu que eu entrasse em contato físico com a cidade de Nova York, o que só veio a acontecer nos anos 1980), fico assombrado com o fato de eu ter vindo a conhecê-lo pessoalmente e de ter havido uma troca de percepções artísticas entre nós. É perdoável que ele viesse a conhecer tão tardiamente um cantor latino-americano, mas é muito menos perdoável que esse mesmo cantor tenha tomado contato com a arte dele com atraso, ainda que muitíssimo menor. Que os dois tenham se encontrado tem algo de maravilhoso. Laurie Anderson veio ao Brasil com um filme, “Home of the brave”, e fui apresentado a ela. Laurie foi assistir ao primeiro show que fiz em Nova York depois disso. Era o “Totalmente demais”, eu só com o violão e falando muito entre as músicas, tão stand-up comedy quanto os antigos shows de Juca Chaves ou Ary Toledo. Muitas pessoas adoravam as canções suaves às cordas de náilon — e, tanto lá quanto aqui, não falta quem diga preferir aquilo a qualquer formação cello-e-percussão ou qualquer banda indie. (…)

No tempo em que eu nada sabia de Lou, Roberto Carlos tinha virado minha cabeça. Antes dos Beatles, aconselhado por Bethânia, dei atenção ao cara. Dali para a frente tudo foi diferente. Mesmo que ele nunca mais queira me ver, continuarei amando quem fez “Fera ferida” e “Esse cara sou eu”. Minhas trombadas nascem de querer quebrar algum esquema cristalizado que me impacienta. Não tenho o direito, acho. Não sou terapeuta dele nem palmatória do mundo. Zuenir estava certo quanto às diferenças de temperamento. Paulinha não gostou do que escrevi sobre o Rei. Mas acho que não tomo jeito, não vou mudar, esse caso não tem solução. Eu tinha feito muito esforço para defender a parte que acho defensável de uma causa que me estranha. Peço perdão.

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O GLOBO

 

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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