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Como um delegado evangélico plantou provas para prender líder de seita inocente

O delegado ao prender o líder da seita: “Deus x Satanás”

Do The Intercept

O BRASIL TOMOU conhecimento, no começo de janeiro, do que parecia ser o desfecho macabro de um crime há meses envolto em mistérios. Duas crianças, cujos corpos esquartejados haviam sido encontrados em setembro de 2017 na cidade gaúcha de Novo Hamburgo, teriam sido sacrificadas em um ritual satânico, encomendado por dois empresários em busca de um pacto por sucesso nos negócios, e levado a cabo com o auxílio de outras cinco pessoas.

A resolução relâmpago do caso pegou de surpresa o delegado Rogério Baggio, titular da Delegacia de Homicídios do município e que investigava o crime há meses. Ele estava em seus últimos dias de férias quando Moacir Fermino, colega que o substituiu por apenas 30 dias, veio a público anunciar que havia desvendado a motivação por trás das mortes. Atribuindo o sucesso de seu trabalho a testemunhas que ele publicamente chamou de “profetas de Deus”, o substituto coletou informações que lhe permitiram descobrir os detalhes do crime. Cristão fervoroso, ele batizou a operação de “Revelação”.

Enquanto Baggio estava de férias, Fermino deu ordem de prisão e fez uma devassa na vida dos supostos envolvidos, sobretudo na de Sílvio Fernandes Rodrigues, dono de um sítio em Gravataí, onde ele mantém um local intitulado Templo de Lúcifer. O delegado passou a chamar Sílvio apenas de “bruxo”. Ele seria o principal personagem do ritual de esquartejamento. Seu sítio foi escavado em busca de fragmentos dos corpos das crianças. A cobertura da imprensa foi extenuante. Ao voltar das férias, o delegado Baggio desmontou a tese de Fermino. Não havia provas contra Silvio.

As conclusões do substituto haviam sido forjadas com base em depoimentos inventados por pessoas que se apresentaram à Polícia Civil com o intuito de se beneficiar indevidamente do programa de proteção a testemunhas, o Protege. Nenhum resquício de corpo humano foi encontrado no sítio. Nenhuma prova material além dos testemunhos foi juntada aos autos.

Os acusados no inquérito desmascarado tentam, agora, reconstruir a vida e a reputação enquanto esperam por uma conclusão da Corregedoria da Polícia Civil gaúcha. A instituição deve anunciar até o dia 17 de março os resultados da apuração do episódio, que ilustra os estragos que uma investigação irresponsável podem rapidamente provocar. A expectativa é que o trabalho dos corregedores consiga explicar a motivação de Fermino e de seus “profetas” para criar um caso em cima do assassinato brutal de duas crianças – cujas mortes continuam um mistério.

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Para sustentar essa trama mirabolante, Fermino, que frequenta uma igreja adventista, não ofereceu nenhuma evidência concreta. Resumiu-se a explicar que tinha sido contactado por dois “profetas”, que teriam feito todas as revelações a um “servo de Deus” – no caso, ele mesmo. De material, apenas uma capa preta e uma máscara de cachorro, supostamente usadas no rito macabro – e que o delegado manuseou ostensivamente durante a coletiva antes de os objetos passarem pela perícia. A operação que teria desbaratado o grupo criminoso foi batizada por Fermino de Revelação.

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Na conversa com a imprensa, destaca-se a exaltação de Fermino quando confrontado pelos jornalistas presentes sobre a falta de provas contundentes:

“Quando botei o pé na delegacia, um homem de Deus ligou dizendo que tinha informações, que era para eu levar um caderno para anotar”.

“Uma testemunha?”, tentou atalhar uma jornalista presente.

“Não, um profeta de Deus!”, insistiu Fermino, erguendo a voz.

“É que está confuso, delegado…”, começou outra repórter. “A gente só quer entender o seguinte, essa pessoa que o senhor chama de profeta…”

“Não chamo! É Deus, não sou eu. É revelação!”

A coletiva acendeu o sinal amarelo na cúpula da Polícia Civil. Poucas horas depois, uma reunião de emergência foi realizada – oficialmente, para discutir a técnica policial usada na investigação.

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O primeiro dos “profetas” mencionados por Fermino na desastrada coletiva teria lhe aparecido ainda em outubro do ano passado, através de uma ligação anônima para seu escritório na 2ª Delegacia de Polícia. Na ocasião, o informante já entrega os detalhes básicos da versão que ganharia as manchetes, incluindo uma descrição do ritual e os nomes dos acusados.

Além de ser o único a falar com o informante, o próprio delegado assinou o registro da ocorrência. Ou seja, ninguém além dele teve contato com o “enviado divino”, em momento algum. “O informante era do delegado Fermino, havia uma relação de confiança entre eles. Eu não tinha, até por questão ética, como exigir que ele me contasse quem era”, defende-se Baggio. Ou seja, o primeiro “profeta” pode ser qualquer um. Ou, como pessoas próximas ao caso insinuam, pode ser que ele nem mesmo exista.

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O segundo “profeta” aparece para Fermino em 4 de janeiro, já durante as férias do delegado Baggio, quando Sílvio, Jair e Andrei já estão presos e Anderson é considerado foragido. É a primeira testemunha alegada do caso. O homem, que faz bicos como servente de obras, é quem inclui Márcio Brustolin entre os suspeitos. Ele conta ao delegado Fermino que, pouco antes dos corpos esquartejados aparecerem no matagal, tinha sido contratado por Brustolin para trabalhar no sítio de Sílvio e no terreno em Lomba Grande onde o ritual teria sido realizado. Em uma noite de começo de setembro, ao voltar para recuperar suas ferramentas, teria testemunhado os sete homens em círculo, duas crianças no centro, a menina ainda desperta e em estado de choque. Após depor, o servente entra rapidamente no Protege, o programa de proteção a testemunhas no Estado. Brustolin, implicado pelo testemunho bombástico, é preso no dia seguinte.

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Em meio à desconfiança crescente, surgiu ainda uma terceira testemunha, que trazia o elo que, supostamente, faltava para fechar o caso: a pessoa garantia ter estado no Templo de Lúcifer, em Gravataí, a convite de um dos empresários presos, estabelecendo a ligação entre os empresários e Sílvio, que a equipe de investigação não achava em lugar algum.

Em acareações envolvendo as três testemunhas que apareceram em 2018, parte da verdade começou a vir à tona. A testemunha que contara ter visto dois acusados deixando as caixas à beira da estrada no dia em que seu filho tinha ido visitá-lo foi desmascarada pela própria esposa: em depoimento, ela negou que o filho tivesse ido ver o pai na data mencionada. Ele e o suposto servente de obras, que implicara Márcio Brustolin no caso, acabaram confessando: estavam mesmo mentindo, tentados pela promessa de casa, segurança e um suposto salário de R$ 3 mil fornecidos pelo Protege.

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O programa leva testemunhas em risco de vida para áreas distantes de onde originalmente residiam. Os próprios investigadores ficam sem contato direto com as fontes. Mas o valor da ajuda de custo do Protege não chega nem perto do que fora prometido aos mentirosos. E isso acabou ajudando a desfazer a rede de mentiras: frustrado com a constatação de que o polpudo pagamento não passava de lorota, a primeira testemunha resolveu abrir o bico e confessar a farsa.

Tanto as promessas quanto os detalhes das versões apresentadas pelas falsas testemunhas foram elaborados pelo mesmo homem. Esse agenciador é chefe da testemunha que havia confundido os dois Guilhermes inconfundíveis e pai da terceira testemunha, que dizia ter sido convidada a ir ao sítio de Sílvio Fernandes por um dos empresários presos.

Perguntado sobre o motivo alegado pelo agenciador para todas essas mentiras, Baggio diz não poder responder, já que a Corregedoria de Polícia ergueu sigilo sobre essa parte da investigação. Tampouco se sabe por que o recrutador conhecia detalhes tão íntimos da investigação.

Espera-se que a Corregedoria, que já falou com quase todos os personagens desse quebra-cabeça, traga os detalhes do que está por trás da rede de falsas testemunhas nos próximos dias. A esperança é que venha à tona ainda alguma revelação sobre o primeiro informante anônimo, aquele que ligou para Fermino em outubro, tendo sido o primeiro a formular a trama antes de todo mundo e segue sem rosto, sem nome e sem origem.

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Aos acusados pelo delegado Fermino, resta o esforço de tocar para frente a própria vida. O empresário Jair da Silva, duas vezes suplente de vereador e figura conhecida em todo o bairro de Lomba Grande, virou quase um recluso. Mesmo após repetidas tentativas, não respondeu aos contatos da reportagem. “Ainda é muito difícil para todos nós”, diz Andrei, um de seus filhos que chegou a ser preso. Ele garante que toda a família foi alvo de agressões e ameaças por parte de policiais. “Não temos inimigos, não fazemos a mínima ideia do porquê de tudo isso. Só ficamos sabendo [dos motivos da prisão] pela minha mãe e pela minha esposa, e depois pelo rádio”, conta.

Em entrevista a The Intercept Brasil, Sílvio Fernandes Rodrigues, o suposto bruxo – hoje livre de todas as acusações, feitas por Fermino com base em provas e testemunhas falsas – relembra as palavras ditas pelo delegado, no momento de sua prisão, em 27 de dezembro. “Ele disse que era Deus, e que veio prender Satanás”, conta Sílvio.

Ele se descreve como mestre de magias, fazendo uso de elementos de quimbanda, Casa de Exu e da lei de Sabath, além de outras linhas ritualísticas, várias delas ligadas a elementais da natureza. “A dualidade é o princípio da minha filosofia, que eu geralmente procuro chamar de luciferianismo”, explica.