Diretora de ‘Que Horas Ela Volta?’: “No Brasil não é chique limpar bunda de criança”
Do uol:
Após fazer uma estreia vitoriosa em Sundance com “Que Horas Ela Volta?”, a diretora paulistana Anna Muylaert fez exibições de sucesso na Berlinale.
No festival alemão, o filme foi escolhido como favorito do público na Mostra Panorama e fechou acordos de distribuição em dez países europeus. O produtor Fabiano Gullane antecipou que para a estreia no Brasil, ainda sem data prevista, a ideia é de que empregadas e babás levem a carteira de trabalho ao cinema e paguem menos.
Uma semana antes de receber o prêmio na tarde deste sábado (14), a diretora conversou com o UOL, quando disse que o projeto foi um chamado da maternidade. “Embora dirigir seja muito difícil, é mais fácil do que criar um filho. Sempre fui muito dedicada ao trabalho, mas quando o José nasceu, vi que aquele trabalho era o mais importante da minha carreira. Então comecei a escrever os livros sobre o Castelo (Rá-Tim-Bum), ganhava muito mais do que escrevendo roteiro para a TV e consegui ficar um ano em casa. Na sociedade comum não é normal ter uma babá, não é chique limpar a bunda da criança, não é chique botar a mão na merda.”
Inspirada pela babá da sua família, Dagmar, a diretora conta que ser mãe a ajudou a perceber a história pelo outro lado. “O chamado da maternidade foi muito forte e eu não só vi que era chique sim, mas como era sagrado, quem não faz isso não está fazendo o bom da vida. Quanto mais merda você limpar, mais você vai crescer. E isso é uma sabedoria muito feminina. Vejo essa questão da babá como uma das questões principais no Brasil, a desvalorização da educação já começa na mãe. E todo esse abismo social que a gente tem, a principal causa é a disparidade entre a escola pública, a escola privada e o valor da educação.”
No evento para a imprensa, as principais perguntas dos jornalistas estrangeiros foram relacionadas a como o filme reflete as discussões políticas do país. Entre as cenas mais comentadas, estão a ousadia de Jéssica (Camila Márdila) ao pular na piscina da casa dos patrões de Val (Regina Casé), uma babá e empregada doméstica que ainda dorme no trabalho. Vinda do Nordeste para estudar arquitetura na USP, Jéssica questiona as relações de poder e a extrema dependência dos empregados, que fazem parte da família, mas de forma limitada.
Muylaert explica a situação colocando o fenômeno dos rolêzinhos como exemplo. “No Brasil teve um evento muito famoso chamado rolêzinhos, que era sobre jovens de classe baixa que iam aos shoppings, considerado um lugar da elite. Eles iam para passear, não faziam nada, não roubavam. Gerou medo e com isso, uma grande discussão sobre o que se pode ou não fazer. Quando ela pula na piscina é meio isso.”
A personagem surgiu inicialmente como o estereótipo da filha da empregada, que podia ser abusada, era frágil e pobre e também terminava virando babá. Mas Anna explica que os esforços eram para mostrar algo além, o que lhe tirou algumas noites de sono no final do projeto, quando decidiu que a personagem seria estudante de arquitetura. “Esse fator mudaria toda a dinâmica da casa”, explica. O maior desafio do roteiro foi mudar o ângulo de visão. “Nasci do outro lado da porta da cozinha, em uma família de classe média, levou tempo para que conseguisse filmar pelo outro lado.”
Apesar de usar a comédia como ferramenta, a diretora diz que sua ambição era fazer algo sério. “Quando comecei esse projeto, queria que ele fosse algo sério, não um final de novela. Sempre fui muito revoltada com essa questão. Nós tínhamos babá e, na escola, quando a professora me pedia pra desenhar a família, não entendia porque ela não poderia estar no desenho, isso sempre me confundiu.”