Golpe é retorno de câncer que envenena o Brasil há séculos, diz pesquisador do RS
Do Sul21:
Em 1823, José Bonifácio escreveu uma representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império sobre a Escravatura no Brasil, denunciando a prática como um “cancro” que envenenava moralmente o país. Embora propusesse a extinção gradual da escravidão, sua denúncia do modelo escravocrata custou-lhe o apoio de grandes proprietários de escravos e de terra, que integravam o grupo aristocrata do Partido Brasileiro. Mais de 190 anos depois, a ferida denunciada por José Bonifácio segue influenciando a vida social e política do país. Para o professor Marco Cepik, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a lembrança de José Bonifácio ajuda a entender que o que está em jogo na atual crise política brasileira não diz respeito somente à forma institucional da nossa democracia, mas sim à resistência histórica das elites nacionais a qualquer projeto que contrarie seus interesses e coloque o combate à desigualdade social no centro da agenda política do país.
Marco Cepik foi convidado pela Frente Universitária em Defesa da Democracia e da Legalidade para dar uma aula pública, na tarde desta segunda-feira (28), em frente ao prédio da Faculdade de Educação da UFRGS, sobre o contexto histórico e internacional da crise política. Ao falar sobre esse contexto, Cepik destacou três períodos históricos em que o Brasil viveu situações semelhantes: o governo de Getúlio Vargas, o de João Goulart e, agora, o ciclo de governos iniciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 1946 e em 1964, assinalou, a classe média conservadora se reuniu com setores da burocracia estatal, incluindo aí as forças armadas, para barrar as propostas de reformas sociais que estavam sendo propostas pelos governos destes períodos.
Em 1954, lembrou Cepik, a crise de agosto culminou com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, que também foi bombardeado, pela UDN e pela grande mídia da época, por uma combinação de acusações de corrupção, crise econômica e denúncias de desequilíbrio fiscal. O suicídio de Getúlio, de certo modo, ofereceu uma solução para a crise cujas forças motrizes, porém, permaneceram atuando. Um ano depois, em 1955, Juscelino Kubitschek foi eleito com cerca de 36% dos votos, vitória esta que acabou sendo contestada por essas forças conservadoras que inventaram uma regra ad hoc dizendo que o presidente eleito não tinha legitimidade porque não havia obtido maioria absoluta. Essa regra, destaca o professor de Relações Internacionais, não existia até então, tendo sido inventada depois das eleições para contestar o resultado do pleito.
Em 1961, o país viveu uma nova crise, com a tentativa, por parte das mesmas forças conservadoras, de evitar que João Goulart assumisse a presidência da República. Essa tentativa acabou abortada pela Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola, empurrando o desfecho da crise para 1964, quando um golpe de Estado civil-militar derrubou João Goulart. Após o fim da ditadura e com a consolidação do processo de redemocratização do país, observou ainda Cepik, foi crescendo um otimismo em relação ao amadurecimento das instituições democráticas no país. “Nós costumamos repetir que as nossas instituições amadureceram nos últimos anos e agora somos confrontados com essa crise. É importante assinalar que a esquerda se comportou de maneira exemplar nos testes de democracia a que foi submetida desde 1946, sempre respeitando as regras da democracia quando foi derrotada eleitoralmente”, acrescentou o pesquisador.