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“Gostaria que o Museu Nacional permanecesse como ruína, memória das coisas mortas”, diz Eduardo Viveiros de Castro

Eduardo Viveiros de Castro (Foto: Reprodução)

Do Público

Eduardo Viveiros de Castro, 67 anos, é um dos mais conhecidos antropólogos brasileiros, autor de vários livros e do conceito de perspectivismo ameríndio [teoria a partir da visão ameríndia do mundo], e professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a instituição que na noite de domingo para segunda-feira foi destruída pelo fogo, que arrasou quase totalmente uma coleção de mais de 20 milhões de peças, com um valor incalculável. Falou ao PÚBLICO por telefone a partir do Rio.

Qual é a dimensão da perda do Museu Nacional do Rio de Janeiro para o Brasil e para o mundo?
O Museu Nacional talvez fosse o lugar mais importante do Brasil em termos do seu valor como patrimônio cultural e histórico, não só brasileiro como mundial. Trata-se da destruição do ground zero, o lugar central que era o símbolo da gênese do país como nação independente e continha um acervo inestimável, não só do ponto de vista da história da cultura e da natureza brasileiras mas com peças de significado mundial. Foi destruída toda a coleção de etnologia indígena, inclusive de vários povos desaparecidos, foi destruída toda a biblioteca do sector de Antropologia, e foi destruído o Luzia, o fóssil humano mais importante e antigo das Américas. É uma perda que não tem como reverter, não há nada que se possa fazer que mitigue, que amenize essa situação. Só se pode chorar em cima do leite derramado, que não adianta nada.

As causas últimas desse incêndio, todo o mundo sabe quais são. É o descaso absoluto desse Governo, e dos anteriores, para com a cultura. O Brasil é um país onde governar é criar desertos. Desertos naturais, no espaço, com a devastação do cerrado, da Amazônia. Destrói-se a natureza e agora está-se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo. Estamos perdendo com isso parte da história do Brasil e do mundo, porque se trata de testemunhos com significado para toda a civilização.

É portanto uma perda com impacto a nível mundial.
Com certeza, tem impacto brasileiro, português, porque boa parte da história de Portugal estava nesse museu também, visto que foi a residência de D. João VI, e também da história mundial – a coleção de etnologia não tinha significado apenas para o Brasil pelo facto de os povos aqui representados habitarem essa parte do planeta, esses povos têm significado para a história da humanidade. Além disso, havia peças muito valiosas que não eram apenas de povos indígenas no território brasileiro, peças africanas, egípcias, etruscas.

É uma perda incalculável que se explica – não se justifica, mas explica-se – pelo descaso absoluto que todos os Governos, e esse Governo ilegítimo em particular, votam à cultura, com cortes dramáticos nos orçamentos da cultura e da educação, ameaças grave de desmontagem das universidades públicas [o Museu Nacional está ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro]. É um projeto de devastação, de criação de desertos, desertos no espaço e no tempo. A destruição do museu é um deserto no tempo, é destruir a memória, destruir a História.

(…)

O que é que se deve fazer agora, perante este edifício queimado?
A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína como memento mori, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio.

Eu não construiria nada naquele lugar. E, sobretudo, não tentaria esconder, apagar esse evento, fingindo que nada aconteceu e tentando colocar ali um prédio moderno, um museu digital, um museu da Internet – não duvido nada que surjam com essa ideia. Gostaria que aquilo permanecesse em cinzas, em ruínas, apenas com a fachada de pé, para que todos vissem e se lembrassem. Um memorial.

(…)