Juca Kfouri publica alerta sobre assédio judicial contra a mídia independente

Do Blog do Juca Kfouri no UOL.
Juízes de primeira instância e até desembargadores vêm acatando processos que impõem a censura a reportagens e opiniões e estabelecem multas sem proporcionalidade e critério. É o chamado “assédio judicial”, cuja vítima mais emblemática do momento é o jornalista Luís Nassif, do GGN.
POR LIA RIBEIRO DIAS*
A censura à imprensa e à liberdade de expressão não é nenhuma novidade na história do Brasil. Vem desde os tempos do Império, quando José Bonifácio, presidente da junta governativa, começou a perseguir jornalistas e jornais. Agravou-se nos períodos ditatoriais, como é próprio dos governos autoritários, ganhou alívio com a redemocratização do país e, desde o início dos anos 2000, adquiriu uma nova roupagem: o assédio judicial.
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Mas o caso atual mais emblemático é o do jornalista Luís Nassif, editor do jornal eletrônico GGN, 50 anos de profissão e muitos prêmios pela sua atuação profissional. Em uma denúncia-desabafo, Nassif relatou que o cerco que lhe vem sendo imposto por cinco ações judiciais em andamento, das 20 de é vítima, acabará por expulsá-lo do exercício do jornalismo: aplicaram-lhe pesadas multas e bloquearam sua conta pessoal e a de sua empresa.
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Luís Nassif – Responde, no momento, a cinco processos, que estão asfixiando financeiramente a ele e a sua empresa. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reverteu sentença de primeira instância e o condenou por difamar Eduardo Cunha, ex-deputado federal, condenado e preso. Foi-lhe imposto um bloqueio de R$ 50 mil em sua conta pessoal e estão sujeitas ao bloqueio todas as fontes de receita do Jornal GGN. Em outra ação, por uma fotomontagem que por engano envolveu um homônimo, o Tribunal de Justiça de São Paulo decretou um bloqueio de R$ 30 mil, em conta conjunta do jornalista com sua esposa. O terceiro processo refere-se a uma ação impetrada pelo governador João Dória contra um artigo de um colaborador do GGN, onde Dória pedia indenização de R$ 50 mil. O juízo aumentou de ofício o valor para R$ 100 mil. A quarta ação foi impetrada pelo desembargador Luiz Zveiter, com inúmeros inquéritos contra ele correndo no Conselho Nacional de Justiça. O juiz fluminense de primeira instância estipulou a condenação em R$ 100 mil e a obrigatoriedade de pagamento imediato sob pena de o nome do jornalista ser enviado ao SPC. A quinta ação foi impetrada pelo MBL, que acusa o jornalista de ter dito que o movimento recebia dinheiro da Lava Jato, embora não houvesse ali nenhuma afirmação de que os R$ 2,5 bilhões da fundação que a Lava Jato pretendia construir com os recursos da Petrobras tivessem alguma ligação com o MBL. O juiz de primeira instância recusou a ação, mas o desembargador impôs multa ao jornalista de R$ 10 mil, afirmando que o texto não era claro.
Schirlei Alves e The Intercept Brasil – A jornalista e o TIB estão sendo processados pelo juiz Rudson Matos e pelo promotor Tiago Carriço de Oliveira, de Santa Catarina, por terem divulgado, em vídeo, trechos da audiência do caso Mariana Ferrer, jovem que foi vítima de estupro, em 2018, por parte de um empresário. Os vídeos mostram a violência psicológica a que a jovem foi submetida por parte do advogado do empresário, sem que o juiz e o promotor tivessem atuado para coibir o abuso. Juiz e promotor, em sua ação, acatada por uma juíza substituta da 3a Vara Cível da Comarca de Florianópolis, acusam a jornalista e o TIB de promoverem “uma verdadeira desinformação no país e a revolta da população contra o autor e o Poder Judiciário”. A juíza não apenas acatou a ação como determinou ao TIB a reedição dos vídeos, eliminando partes sob pena de multa diária. A indenização pedida pelo juiz é de R$ 450 mil e o promotor pede R$ 300 mil. Schirlei, que nos últimos anos tem se dedicado à cobertura de pautas na área de direitos humanos, trabalhava no ND+, de Florianópolis, quando iniciou a cobertura do caso Mariana Ferrer. Pouco depois foi demitida, sob o argumento de reestruturação da redação. Foi quando ofereceu a reportagem ao The Intercept Brasil.
J.P. Cuenca – Responde a 111 ações movidas por pastores da Igreja Universal que se sentiram ofendidos por um tuíte publicado este ano pelo escritor e colunista do Deustche Welle. Parafraseando o padre francês Jean Meslier[1] (1664-1729), Cuenca tuitou: “O Brasil só estará livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”. Segundo o jornalista, o tuíte foi um comentário à notícia de que o governo brasileiro subsidiaria emissoras evangélicas. Seguindo o mesmo padrão das ações contra Elvira Lobato, as ações contra Cuenca, também espalhadas por todo o país, em cidades remotas, constituem litigância de má fé, porque inviabilizam qualquer defesa. Seus autores, todos pastores da Universal, pedem indenização de R$ 10 mil ou R$ 20 mil cada um, o que dá um total que varia de R$ 1,1 milhão a R$ 2,2 milhões. “A ideia deles é criar um caso indefensável”, disse Cuenca, em entrevista. “Não tenho capacidade logística ou econômica para me defender.” O advogado Fernando Lacerda, que assumiu sua defesa gratuitamente, explicou que, embora as ações não sejam idênticas, ele vê nelas um padrão, o que o faz pensar em uma ação orquestrada. Em alguns casos, no entanto, as ações são quase idênticas, como as assinadas pelos pastores Lúcio Furtado, de Unaí (MG), e Rogério Furtado, de Ariquemes (RO). Em tempo: Cuenca perdeu sua coluna no DW, que considerou contrário aos seus valores o tuíte que indignou os pastores.
Marcelo Auler – Repórter investigativo com longa carreira na imprensa corporativa, edita há quase seis anos o Blog Marcelo Auler – Repórter, que produziu uma das melhores coberturas da Operação Lava Jato. Em sua vida relativamente curta, o blog já acumulou sete processos judiciais; em quatro deles lhe foi imposta a censura em matérias publicadas e, em três, solicitadas indenizações que acabaram extintas. Embora Auler não tenha sido obrigado a pagar multas nem a enfrentar bloqueio de conta bancária, ele relata que os processos geraram gastos como despesas de cartório, xerox e viagens a Curitiba, Belo Horizonte e Brasília, que comprometeram seu apertado orçamento. Isso porque não teve que pagar advogado. Sua defesa foi pro bono. Dos sete processos, dois permanecem em andamento. Um deles se refere à censura imposta pelo juiz Luís Decossau Machado, da 5a Vara Cível de Curitiba, impetrado pela juíza estadual Márcia Regina Hernandez de Lima, referente à reportagem publicada no blog e no Jornal do Brasil impresso sobre a separação de crianças haitianas de seus pais, todos refugiados no país.
* Lia Ribeiro Dias é jornalista e associada da APJor. Colaborou Leda Beck, também jornalista e associada da APJor.
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