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Mandetta fala sobre seu trabalho com Bolsonaro: ‘A gente se preparou para um vírus lento’

Mandetta. Foto: Wikimedia Commons

De Paula Ferreira e Renata Mariz no Globo.

Em entrevista ao GLOBO dez meses depois do início da epidemia do coronavírus no Brasil, Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde entre janeiro de 2019 e abril de 2020, afirma que, hoje, o país está mergulhado em uma “tripla crise”: “de prevenção, atendimento e vacina”. 

Onde falhamos no combate ao coronavírus? Por que vemos nova alta de casos?

Primeiro, porque o presidente não acredita (no vírus). Até hoje não houve uma fala do presidente que ajudasse a Saúde pública brasileira. Ninguém aguenta mais, é legítima a pressão da economia, mas todo mundo deveria andar junto, ou ter uma regra bem clara e transparente para recomendar lockdown tecnicamente e o governo federal apoiar medidas necessárias. Quando a taxa de ocupação hospitalar ultrapassa 90%, tem que frear. A saída da crise depende muito da capacidade de vacinação da população. Até agora não transparece que a gente vá ter a execução de um plano bem fundamentado. Parece tudo errático. É preciso ter uma capacidade de liderança muito forte, e o Brasil está sem liderança em Saúde.

O presidente Jair Bolsonaro errou na condução da pandemia? Quais os principais erros do governo?

Quando a China noticiou a doença e a OMS (Organização Mundial da Saúde) fez a primeira recomendação de emergência somente para Wuhan, logo no início, apresentei ao presidente essa situação, que era uma doença para a qual tinha que se organizar, o presidente entrou em uma rota de absolutamente negar a existência disso, assim como outros líderes mundiais. Ele falou várias vezes que entre a saúde e a economia, ele ia ficar com a economia. E a população começou a construir as suas linhas de defesa sem contar com a liderança da figura maior do governo. Vimos o Ministério da Saúde falando uma coisa e ele falando outra. Ele começou a criticar todo e qualquer prefeito e governador que fizesse qualquer coisa para diminuir a velocidade de transmissão para não carregar o sistema de saúde, que era o principal problema da doença. Depois ele me troca, coloca um médico. É impossível para um médico com base científica fazer política de governo, firmar uma recomendação, uma prescrição médica. Aí ele põe um militar para oferecer ordem. Faz uma intervenção militar na Saúde, mas um militar não tem a menor noção do que é Saúde. A gente passa a ter um governo federal que sai completamente do enfrentamento da Saúde e com o argumento de que o problema era de logística. Nunca foi, o problema era de Saúde pública, muito mais complexo do que carregar caixa para lá e para cá. E agora tem uma crise tripla, de prevenção, atendimento e vacina.

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Do que se arrepende no cargo ou faria diferente?

Gostaria muito de ter tido melhor percepção, porque quando a China apresentou a doença, eles apresentaram como um vírus pesado, que se você identificasse a pessoa e bloqueasse os contatos dela, ele parava (de disseminar). A gente se preparou com essas informações para um vírus lento. Somente quando ele entrou na Itália, que fez aquele estrago no sistema italiano, e foi fazendo estrago na Inglaterra, na Espanha e se mostrou extremamente capaz de transmitir, é que vimos que estávamos diante de um vírus extremamente competente. Se eu soubesse que era um vírus tão competente em termos de transmissão, teria feito um sobredimensionamento de vigilância e testagem. A gente começou imaginando que precisaria de 2 mil leitos de CTI a mais, recalculamos e vimos que precisaríamos de 15 mil a mais. Somente quando a doença chegou na sociedade ocidental (vimos a dimensão). Com a doença no mundo ocidental, com a imprensa livre, com as academias livres, ciência livre, os governos democráticos tiveram que impor a realidade. Diante do que pôde ser feito naquele período com os elementos que a gente tinha, eu não faria nada diferente.

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