Número de escolas públicas militarizadas cresce no país

Da Época
Ítalo Cardoso, de 9 anos, apertou ligeiramente o passo no começo daquela tarde de 14 de junho. Ele não queria chegar atrasado à escola. Um minuto de atraso poderia lhe render uma anotação de infração no boletim escolar. Ao se aproximar do colégio, Ítalo ajeitou a farda com destreza. Enquanto caminhava em direção a dois militares para bater continência, assentou na cabeça a boina marrom, limpa e bem asseada, para que nenhuma ponta de cabelo ficasse à mostra. Na porta da escola, um militar parrudo fez uma breve revista no menino e o liberou para se juntar a 700 colegas que se encontravam em fila indiana e divididos em dois pelotões. Gritos de guerra, hasteamento da bandeira e hinos nacionais deram continuidade ao ritual de entrada de Ítalo na escola, similar ao de um quartel.
“Quartel”, aliás, é a palavra usada pelos oficiais da Polícia Militar de Goiás para se referir ao Colégio Estadual Waldemar Mundim, na periferia de Goiânia, onde Ítalo cursa o ensino fundamental. A rotina diária dos alunos do Waldemar Mundim é militar, como mostra a “primeira revista” feita por dois militares na porta da escola, que costumam barrar meninas com esmalte nas unhas ou cabelos soltos e rapazes com costeleta fora do padrão ou barba e bigode por fazer.
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Há três anos, a realidade do Waldemar Mundim era diferente. O colégio tinha uma gestão civil, além de um grêmio estudantil que organizava apresentações musicais e de dança, bazares, aulas de teatro e almoços comunitários. Todas as atividades eram compartilhadas num blog criado pelos próprios alunos, que atualmente está desativado, assim como o grêmio.
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Em 19 de julho de 2015, depois de um projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa do estado, o então governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), transferiu a gestão do Waldemar Mundim para a PM. Em uma transição que demorou menos de um mês, a direção civil do colégio foi destituída e um coronel da reserva foi indicado para assumi-la. Outros 16 policiais foram escalados para a missão de implantar um novo modelo de ensino, baseado num regimento de 74 páginas escrito pelo Comando de Ensino Policial Militar, subordinado à Secretaria Estadual de Segurança Pública e que tem a Secretaria de Educação apenas como parceira. No mesmo ano em que o Waldemar Mundim foi transferido aos militares, outras 14 escolas de Goiás passaram pelo mesmo processo, e salas e corredores viraram “alas” e “pavilhões”.
Atualmente, Goiás conta com 46 escolas, com 53 mil alunos, sob administração da Polícia Militar. Há cinco anos, o estado tinha apenas oito colégios militares. De 2013 para cá, 30 escolas foram retiradas da administração civil da Secretaria de Educação e foram transferidas para a PM. Inicialmente, a militarização das escolas estaduais goianas foi justificada pelo governo Perillo como uma medida para atenuar altos índices de violência em áreas de periferia. Ela ganhou impulso e virou bandeira política com a melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dos colégios militarizados.
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Atualmente, outras 39 escolas de Goiás estão em processo de militarização — e o modelo seguido pelo estado está se espalhando rapidamente pelo país. Um levantamento feito por ÉPOCA descobriu que, de 2013 a 2018, o número de escolas estaduais geridas pela Polícia Militar saltou de 39 para 122 em 14 estados da Federação — um aumento de 212%. Em 2019, outras 70 escolas deverão ser colocadas sob a gestão de militares nesses estados. O fenômeno se reproduz por todo o país, mas com mais intensidade nos estados do Norte e do Centro-Oeste. Amazonas já conta com 15 escolas administradas pela PM. Mato Grosso pretende criar cinco escolas da PM no segundo semestre. Em Roraima, das 382 escolas da rede estadual de ensino, 18 unidades foram militarizadas, totalizando 20 mil alunos sob jurisdição militar. O governo estadual diz que as escolas militarizadas estão localizadas em áreas de vulnerabilidade social, econômica e cultural e que apresentam problemas de furtos, roubos, assaltos e drogas.
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Ministério da Educação acompanha à distância o movimento de militarização das escolas promovidas por governadores e prefeitos. Lava as mãos ao dizer que a Constituição e a legislação educacional brasileira deixam claro que as escolas de educação básica são de gestão das redes estaduais e municipais, que têm autonomia para tal.
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A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) destacou que as escolas públicas civis transformadas em militares pelos governos estaduais são diferentes dos colégios militares tradicionais que fazem parte da rede de ensino das Forças Armadas ou das PMs estaduais. A CNTE vê a apropriação das escolas pela gestão militar como um sério risco para a “consolidação de uma educação pública, laica e de valores republicanos”. “Implanta-se nessas escolas uma nova pedagogia: o militarismo. Há casos de testes físicos que levam alunos à exaustão e causam traumas físicos e psicológicos em crianças e adolescentes”, afirmou o secretário de Assuntos Educacionais da entidade, Gilmar Soares Ferreira. Para ele, a substituição de professores e diretores de carreira por gestores e professores militares é promovida por “forças políticas conservadoras e antidemocráticas que têm ferido a Constituição”.
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