Observatório Covid diz que “não é possível verificar se vacinas vencidas foram aplicadas”

(crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

O Observatório Covid-19 BR, iniciativa independente, comentou sobre as supostas “vacinas  vencidas” apontadas pela Folha de S.Paulo:

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No dia de ontem (02/07/2021), a Folha de São Paulo publicou uma matéria com o título “Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid; veja se você é um deles”. A matéria afirma categoricamente que 26 mil doses fora da validade foram aplicadas em 1532 municípios.

Em breve resposta, diversas prefeituras emitiram comunicados contradizendo tal afirmação.

O Observatório COVID-19 BR se dedica a acompanhar diariamente, há mais de um ano, as dinâmicas e desafios da epidemia e mais recentemente da vacinação em curso e conhece as precariedades e fragilidades dos sistemas de informação atuais do Ministério da Saúde. Já falamos disso em nosso Twitter, no dia 17 de maio de 2020:

Também cientes desses problemas o CONASEMS e CONASS lançaram nota esclarecendo sobre atrasos nas entradas de dados e reiterando que já vinham apontando este problema e cobrando sistematicamente o governo federal para que tais debilidades sejam superadas. Estabelecemos um diálogo com todos os usuários e gerenciadores dos dados públicos em Saúde no Brasil sobre a pandemia do Covid-19.

A matéria induz a equívocos pois, partindo de uma base de dados que possui inconsistências já há muito tempo sabidas, realiza cruzamento de datas de vacinação com validades de lotes de vacina, sugerindo que estariam vencidas no momento de sua aplicação. Nestes casos, é preciso verificar a confiabilidade dessa afirmação. Não se trata aqui de afirmar que tais inconsistências não mereçam destaque e cobrança por parte da mídia e população em geral. Trata-se, de um alerta em relação ao foco dado para o achado, e consequente impacto junto à população. Faz-se necessário demonstrar qual foi o procedimento para tal cruzamento e quais foram os critérios para se chegar nesses cruzamentos, é de suma importância que haja transparência por parte dos jornalistas sobre a forma como tal procedimento foi feito, isso dará valor, se confirmado, ao achado.

Não há elementos para afirmar que brasileiros tomaram vacina vencida contra Covid.

Assim como a equipe de reportagem, membros do Observatório Covid-19 BR verificaram essas informações fazendo uma amostragem na base de dados, e em toda a amostra analisada, o que foi encontrado sugere fortemente que se tratam de erros de digitação nas bases de dados ou erros a partir da alimentação dos dados no sistema nacional (SI-PNI) a partir de sistemas próprios dos estados e município.

No botão a seguir você encontrará heatmaps com as aplicações dos lotes registradas como depois da data de vencimento. A falta de continuidade das aplicações nos municípios é um indício forte de problema de preenchimento.

Para verificar os outros lotes, basta substituir o código em seu URL. Os lotes apontados pela Folha são: ‘4120Z001’, ‘4120Z004’, ‘4120Z005’, ‘CTMAV501’, ‘CTMAV505’, ‘CTMAV506’, ‘CTMAV520’, ‘4120Z025’.

Tais debilidades dessas bases são conhecidas por pesquisadores e gestores,e também têm sido destacadas por jornalistas desde que foi iniciada a campanha de vacinação para imunizar a população, em janeiro de 2021.

É importante lembrar que o processo de registro de cada dose aplicada passa por uma série de etapas como, por exemplo: anotação manual dos dados do indivíduo, da dose aplicada, e data de aplicação em ficha de papel no local de aplicação (a depender da infraestrutura local); digitação dos dados em sistema informatizado local e, finalmente, transferência dos dados inseridos nos sistemas locais para o sistema nacional. Essa dinâmica varia entre os estados, municípios, e até mesmo entre locais de vacinação em um mesmo município. Cada uma dessas etapas está sujeita a erros, que vão desde anotação equivocada na ficha de papel ou no sistema informatizado local, até erros no processo de migração dos dados entre sistemas distintos, como ilustrado ainda no dia 2 de julho com dados de Maringá, extraídos do dado público do SI-PNI. Essas inconsistências, embora importantes e necessitem constante validação dos dados já inseridos, de maneira geral não impactam análises agregadas como, por exemplo, cálculo do percentual da população já vacinada por faixa etária, por apresentarem um volume baixo frente ao total de registros. Porém, tornam-se obstáculos importantes para análises relacionadas aos chamados eventos raros, aqueles que ocorrem com relativamente baixa frequência.

Vale ressaltar que esses valores correspondem a 0,7% do total de 3,9 milhões de vacinas já aplicadas da AstraZeneca, aproximadamente. Vale ressaltar que esse número frente ao total de doses de todas as vacinas aplicadas no país é ainda menor, 0,0026%, segundo nota conjunta CONASS e CONASEMS. Trata-se de um valor compatível para erros de digitação e outras inconsistências em banco de dados [1], em linha com o que já foi encontrado em pesquisas sobre frequências de erro em bases de dados em saúde. A matéria, porém, sequer se vale de tal possibilidade explanatória das inconsistências.

A aplicação de vacinas no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS é submetida a tripla checagem para datas de validade. Apesar de todo o subfinanciamento e tentativas de desmonte, o SUS segue como referência mundial para campanhas de vacinação.

Isso não significa que não possa ter havido vacina aplicada fora da data de vencimento, mas urge cautela antes de se declarar a origem dos problemas enfaticamente, em especial com tal potencial de repercussão e impacto sob a vacinação.

Consideramos que a matéria dá um tom de alarme e infere informações que ainda não são seguras, isso pode elevar a já alta insegurança da população quanto às vacinas e sobre a campanha de vacinação. Chamamos a equipe de jornalistas a disponibilizar as análises feitas e quais decisões foram tomadas para se cruzar cada um dos campos, entendemos que esse é o modo mais transparente de se auditar uma afirmação tão categórica como a do título da matéria e nos disponibilizamos a realizar publicamente essa análise. Pedimos também que haja cuidado quanto às conclusões e o tom sobre elas acerca da vacina.

O que os jornalistas identificaram foram inconsistências, infelizmente corriqueiras, que podem estar associadas a eventuais falhas vacinais por aplicação de doses vencidas, mas que muito provavelmente se devem apenas a incongruências entre bancos, problemas de digitação, exportação e inserção de dados, bem como de disponibilização das informações.

O dado é exatamente o mesmo, porém: não se trata de terem encontrado aproximadamente 26 mil doses aplicadas fora do prazo de validade, mas sim 26 mil inconsistências nos campos associados, que merecem investigação para o acompanhamento adequado e, se necessário, convocar os indivíduos vacinados, caso seja constatado que de fato tenha ocorrido vacinação fora do prazo.

Com isso, dá-se o devido destaque para a necessidade de melhorias no sistema e averiguação desses registros, mas sem causar pânico desnecessário. A transparência e a consistência no dado público são essenciais para um melhor entendimento e a tomada de ação na pandemia, porém são igualmente necessárias em qualquer análise sobre esses mesmos dados públicos. O Observatório, há mais de um ano, disponibiliza todas as bases de dados públicas por nós coletadas, bem como todos os passos de processamento que realizamos para chegarmos a qualquer conclusão sobre a real situação, tanto da pandemia como da vacinação.

Por fim, o Observatório lembra que hoje, além de maior disponibilidade de vacinas, a maior necessidade é de que haja orientação intensiva à população, e que está, tanto no combate à pandemia como na campanha de vacinação, precisa de parcimônia e coordenação, bem como segurança sobre a informação que se passa.

Referências
  1. S.I. Goldberg, A. Niemierko, A. Turchin, Analysis of Data Errors in Clinical ResearchDatabases. AMIA Annu Symp Proc. 2008; 2008: 242–246 
Pedro Zambarda de Araujo

Escritor, jornalista e blogueiro. Autor dos projetos Drops de Jogos e Geração Gamer, que cobrem jogos digitais feitos no Brasil e globalmente. Teve passagem pelo site da revista Exame e pelo site TechTudo. E-mail: pedrozambarda@gmail.com

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Pedro Zambarda de Araujo

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