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“Órfã de feminicídio, decidi transformar dor em luta pelas mulheres”, diz coreógrafa Lili de Grammont

Lili de Grammont. Foto: Reprodução/Instagram

Da coreógrafa Lili de Grammont na revista Marie Claire.

Sempre brinco que nasci Sandy e virei Liliane. Sou filha de um cantor goiano que foi muito famoso no Brasil há 40 anos, o Lindomar Castilho, um dos maiores vendedores de discos dos anos 1970, conhecido como o rei do bolero. Ganhou prêmios, cantava no rádio, na televisão. Ele e minha mãe, Eliane de Grammont, que também era cantora, se apaixonaram à primeira vista. Os dois se conheceram nos corredores da gravadora RCA. Meu pai estava gravando uma música composta pela minha avó materna, que era compositora e trabalhava para a gravadora. Minha mãe, uma menina de 20 e poucos anos, estava no início de uma carreira promissora, gravando suas primeiras canções. Era uma estrela em ascensão.

Assim que conheceu meu pai, largou do noivo para namorá-lo. Depois de de um namoro instável, engravidou. Decidiram se casar e tudo aconteceu rápido: no dia da cerimônia, estava com seis meses de gravidez – por muito tempo senti que casou apenas por minha causa, uma culpa que carreguei a vida toda. “E se não tivessem casado?”, pensava. Ela poderia estar aqui, com 65 anos, seria minha amiga.

Meu pai era muito ciumento, agressivo. Quando eles se casaram, pediu que ela parasse de cantar e não trabalhasse. Ela infelizmente topou. Abriu mão da vida profissional porque era louca por ele. Tão apaixonada que retirou todas as queixas que fez das agressões que sofria por causa do ciúme e do abuso de álcool dele. Amava muito a ele e pouco a ela mesma. Depois de pouco mais de um ano morando juntos, se separaram, mas não legalmente, já que o divórcio não saía tão rápido naquela época. Foi aí que minha mãe, com 26 anos, retomou a vida. Cantava MPB, Elis Regina, Chico Buarque e músicas originais compostas por minha avó em bares e casas de show e foi convidada para se apresentar no extinto bar Belle Époque, nos Jardins, em São Paulo. Depois da separação, chegou a tentar uma reconciliação, mas ele que não quis. Mesmo assim, não aceitava que ela se relacionasse com outras pessoas. As más línguas dizem que minha mãe traiu o marido, como se tivesse alguma culpa pelo próprio destino.

Com a separação, decidiram partilhar a minha guarda, com períodos alternados entre os dois. Eu tinha quase 2 anos e estava na casa do meu pai quando, na madrugada do dia 30 de março de 1981, ele entrou no Belle Époque e disparou cinco tiros em direção a ela, que estava no palco. Um deles a atingiu no peito. A música que ela cantava era ‘João e Maria’, de Chico Buarque, e ela caiu no meio da frase ‘Agora era fatal que o faz de conta terminasse assim, pra lá do meu quintal, era uma noite que não tem mais fim, pois você fugiu no mundo sem me avisar e agora eu era um louco a perguntar’. Minha mãe morreu a caminho do hospital, e meu pai, preso em flagrante, levou uma surra das pessoas que estavam no bar, quase foi linchado. A história ainda tinha um agravante: minha mãe já estava morrendo. Ela tinha uma miocardiopatia genética que matou dois de seus irmãos e estava debilitada, desmaiava de repente. Todos sabiam que era uma questão de tempo até ela morrer. Acho que isso mexeu com a cabeça do meu pai.

Foram quatro anos até o julgamento, período que ele esperou em liberdade e que passei muito perto dele. Morava com a minha avó materna em São Paulo, mas, por ordem judicial, ela era obrigada a permitir visitas nos fins de semana. A gente tinha um laço de pai e filha. Brincávamos, ele era divertido. Mas lembro também que ele tinha certa arrogância, fruto do machismo estrutural.

Até então sabia que minha mãe tinha sido assassinada com um tiro. Ninguém me falou diretamente, mas criança pega essas conversas dos adultos. Na minha cabeça infantil, criei a fantasia de que havia sido um ladrão. Minha avó materna, para me proteger, proibia que falassem sobre o assunto. Proibia, inclusive, que falassem mal do meu pai. Foi uma grande mulher que teve um olhar terapêutico e entendeu que eu precisava ter uma imagem paterna bem construída, mesmo que fosse do homem que assassinou a filha dela. Ela me permitiu amá-lo. Eu de fato amei e amo ainda.

(…)

Apenas em 2019, com ajuda do meu marido, comecei a escrever um livro autobiográfico que hoje está sendo adaptado para o audiovisual. O título é Uma Escada para Lua. Quando era pequena, sempre que tocavam a campainha, achava que era minha mãe. Minha avó dizia que não, que ela estava no céu. E eu então decidi que um dia construiria uma escada para a lua, para encontrá-la. Criei também junto com meu parceiro um espetáculo de dança e teatro chamado Casa de Vidro. É uma conversa com os homens, fala da violência emocional, velada e estrutural, aquela pela qual todas nós um dia já passamos. As notícias do aumento da violência contra a mulher durante a pandemia também soaram um alarme dentro de mim. Entrei para o grupo Mulheres do Brasil, para o comitê de violência contra a mulher. O caso da minha mãe não é apenas dela, mas de todas. Meu pai foi condenado em 1984. Em 1985, inaugurou-se a primeira Delegacia da Mulher. Nos anos 1990, foi fundada em São Paulo a Casa Eliane de Grammont, serviço que oferece atendimento a vítimas de violência doméstica e sexual.

Depois de todas essas conquistas, me restava contar para seu Lindomar que queria curar as feridas do passado e isso significava expor nós dois em um livro. Fiquei meses sem coragem de contar. Liguei no Dia dos Pais, nesta quarentena. ‘Pai, eu estou finalizando minha escola de dança e agora vou militar em defesa da mulher’. Achei que ele diria: ‘Nunca mais fale comigo’. A surpresa veio com sua resposta: ‘Não se preocupe comigo, filha. Honre sua mãe’. Achei muito corajoso e generoso.    

Me perguntam: ‘Você perdoou ou não perdoou seu pai?’. Falo que sim e não. Perdoei porque procurei uma reaproximação. Porque, depois de matar minha mãe, ele não saiu machucando ninguém, não insistiu no erro. É o típico machista brasileiro que tem verdades fixas. Mas percebo nele um arrependimento profundo, até porque ele não consegue conviver mais com ninguém, nem comigo. Como se a solidão fosse uma autopunição. De jeito nenhum quero passar a mão na cabeça do meu pai, mas prefiro  um diálogo para entender onde a gente pode conversar com os homens para fazer alguma diferença para a vida das mulheres.”