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Professor da UFF teme “polícia política” de Bolsonaro e Moro

O jornalista Gil Alessi do El País Brasil entrevistou o professor Renato Lessa, cientista político da Universidade Federal Fluminense.

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Pergunta. Como você vê a decisão de Moro de aceitar fazer parte do primeiro escalão do Governo de Bolsonaro?

Resposta. Eu vejo com preocupação e estranheza. Sabemos que a natureza humana é imperfeita, mas essas pessoas [Moro e Bolsonaro] se colocam como impolutas, se apresentam como mitos, 100% virtuosas. Existe um desconforto entre essa narrativa do mito e uma configuração política, que não é pura. Outra coisa: o próprio juiz Moro disse que não era apropriado que ele tivesse participação na política, pois isso colocaria sob suspeita o trabalho feito por ele e pela força-tarefa da Lava Jato. Ele admitia que essa escolha teria implicações, e uma delas é colocar em dúvida as motivações que estiveram permeando a operação.

P. Simbolicamente o que Moro significa para o Governo?

R. O presidente eleito recuperou um mote que foi muito corrente em 1964, que é o da luta contra a corrupção e a subversão, foi assim que ele se apresentou ao país. Há uma ênfase muito forte na purificação e limpeza do país dessa gente a quem ele se refere como “os vermelhos”, por mais que estes “vermelhos” tenham uma atuação dentro dos limites democráticos do Estado de Direito. Após ser eleito, Bolsonaro não agiu como se esperava de um presidente eleito, não disse que estas pessoas fazem parte do país, não pacificou o assunto. Essa passagem de Moro para a política, do ponto de vista do novo Governo, é um golpe de mídia muito forte. Mostra que eles estão comprometidos com o combate à corrupção. Como se o juiz fosse uma bala de prata contra a corrupção, mas sabemos que na política as coisas não funcionam assim.

P. Como você vê a atuação da Polícia Federal sob o comando de Moro?

R. O presidente Michel Temer editou um decreto em outubro que cria uma força-tarefa para lidar com o crime organizado. Nesse decreto, o crime está associado como uma ameaça ao Estado e às instituições, logo cria-se a figura dos inimigos internos. É uma abertura para a reinserção no direito brasileiro do crime político. O traficante já está enquadrado direito penal. Quando associo organização criminosa a uma ameaça ao Estado e às instituições, isso aponta para movimentos políticos que discordam de políticas do Governo, como o Movimento dos Sem Terra ou o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, cuja existência é legitima segundo a Constituição. Então está se desenhando para o Bolsonaro, com o auxílio do Temer, a criação de uma polícia política. A expectativa é de que, com o Moro na Justiça, a Polícia Federal possa ser empregada como esta polícia política, fiscalizando e reprimindo essas organizações que não são traficantes ou milicianos.

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P. Bolsonaro se apresenta como um outsider da política. Que relação Moro tem com essa suposta nova política?

R. Vejo como uma espécie de corolário. Parte do comportamento do Moro nesse processo todo foi muito convergente com o processo de desconstrução da classe política brasileira. Não digo que houve uma intencionalidade, mas no processo, o que resultou disso, foi a desconfiguração dessa classe política que criou um ambiente propício para a vitória da candidatura da direita.

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P. O Supremo Tribunal Federal já traçou um limite para eventuais autoritarismos do Estado ao vetar ações policiais nas universidades. Caso Bolsonaro adote medidas restritivas de liberdade, Moro deve se alinhar à Corte contra os ataques ao Estado de Direito?

R. O ministro não pode cerrar fileiras com o Supremo. O que o STF fez na última sessão foi começar a construir um dique contra o autoritarismo, a ver se irá aguentar. Os ministros da corte deixaram claro que nenhuma iniciativa legal iria vingar nesse sentido de restringir direitos, e promotores também têm se manifestado nesse sentido. Mas em breve poderemos ter um conflito político entre um Governo que pode querer tirar enquadramentos liberais do Governo brasileiro, e o STF que irá tentar garantir esse enquadramento.

Alguns acreditam que Moro irá agir para defender estas liberdades, ao lado do Supremo. Enquanto estava na magistratura, nunca vi nenhuma manifestação dele contra o ordenamento constitucional, por mais que ele tivesse consciência dos efeitos políticos que algumas de suas ações teriam. No entanto agora a dinâmica é outra: ele será um ministro forte dentro de um Governo que não tem bases liberais, a não ser na economia. Agora veremos como Moro reage enquanto agente político. Dentre as propostas de Bolsonaro várias vão no sentido de restringir liberdades: redução da maioridade penal, escola sem partido, propostas para supostamente combater o terrorismo…

P. Quais as chances de que Moro consiga repetir na Segurança Pública o sucesso que atribuem a ele na luta contra a corrupção?

R. Acho muito difícil. O crime organizado é muito difuso, espalhado por Estados que acabam arcando com a maior parte do ônus combate. Isso impõe uma coordenação que nós nunca conseguimos fazer, um Plano Nacional de Segurança Pública. Atualmente isso é feito por espasmos, por operações midiáticas, mas não se sente a presença de um programa que estruture uma concepção de Segurança. Não acho que isso possa existir sem uma reflexão mais profunda. E o que temos de proposta do presidente eleito para o tema? O excludente de ilicitude [para o policial que mata], como se o problema da segurança fosse a insegurança do policial. Além disso, o Moro nunca se dedicou ao tema, não é a especialidade dele, logo não acho que ele irá rever os paradigmas.

Renato Lessa. Foto: Reprodução/YouTube