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Safatle: é inédito o uso explícito da religião como elemento de justificação do poder no governo Bolsonaro

A Coluna do filósofo Vladimir Safatle na Folha de S.Paulo aborda a indicação de Ricardo Vélez Rodrigues para o Ministério da Educação de Bolsonaro e como isso ocorreu. “Não consta momento algum da história da República brasileira no qual representantes do poder religioso tiveram força suficiente para vetar o nome de um possível ocupante do ministério da Educação. O que aconteceu nesta semana é fato inédito. Ele indica quão longe estão dispostos a ir os membros do futuro desgoverno em seu uso explícito da religião como elemento de justificação do poder e de mobilização na tentativa de reconfiguração cultural do país. Nunca é demais lembrar como a democracia ocidental nasceu, entre outros, por meio do combate à religião”.

O intelectual desenvolve o raciocínio: “ela foi impulsionada pela criação de um espaço político no interior do qual a justificação do poder não seria mais alimentada por qualquer forma de crença em escolhas divinas, na qual o amparo produzido pelo discurso religioso não desempenharia mais papel nos modos de produção da coesão social. A democracia moderna, como gostava de acreditar Max Weber, seria assim solidária de um processo de desencantamento do mundo vindo da perda do poder unificador dos mitos teológico-religiosos na fundamentação das esferas sociais de valores (cultura, arte, política, economia, ciência, entre outros). Hoje, não é difícil perceber como esse projeto nunca foi completamente realizado. Há várias formas de regressão social periódica a assombrar o que conhecemos até hoje por democracia e uma delas é a regressão religiosa fundamentalista, independentemente de ela ocorrer na Turquia muçulmana, na Polônia católica ou no Brasil com seus evangélicos”.

Cita exemplos de países que não conseguiram se modernizar de maneira adequada: “a Polônia comunista, a Turquia de Atatürk ou o Brasil com sua modernização conservadora foram incapazes de dar, a largas parcelas da população, algum sentido substantivo para a experiência de serem cidadãs e cidadãos de um estado laico. Ao contrário, essas largas parcelas foram submetidas à violência periódica do Estado, à despossessão de sua condição de sujeitos políticos e à brutalidade econômica de crises contínuas e desagregações econômicas. Nesse contexto, a religião pode oferecer a crença na produção de uma nova comunidade baseada na promessa de amparo e redenção. Ela coloca em circulação seu poder pastoral, prometendo amparo –seja sob a forma de uma comunidade de crentes marcada pela assistência mútua e pela promessa de solidariedade, seja sob a forma de um discurso que procura anular a contingência de fenômenos que nos desestabilizam continuamente, como o sexo, a morte e a relação à autoridade, isto é, ainda sob a forma de narrativas teleológicas de guerras e vitórias finais. Ela ainda promete o gozo (pois não há religião sem gozo) na fusão incestuosa com o sangue e o corpo da divindade”.

E finaliza: “no começo dos anos 1970, o psicanalista Jacques Lacan podia dizer: ‘vocês ainda não têm ideia do que será o retorno da religião’. Ele podia dar declarações dessa natureza por perceber como a política moderna mobilizava os mesmos afetos do discurso religioso, como o desejo de amparo e a produção contínua do medo. Contra a religião, só haveria uma saída, mas ela não seria utilizada pelo discurso político. Pois, do ponto de vista da circulação dos afetos, só se quebra a força da religião pela afirmação do desemparo, ou seja, por meio da afirmação da recusa a todo amparo vindo de um Outro, como se do desamparo pudesse nascer uma certa coragem cuja consequência política maior seria a produção de sujeitos que não querem mais ser governados. Sujeitos que sabem que sua ausência de lugar natural não é uma falha que deve ser superada, mas uma condição para a produtividade da liberdade. Sujeitos que afirmam a contingência de sua existência e de seus caminhos. Mas sempre haverá um poder político a se alimentar dos nossos afetos mais regressivos e amedrontados”.

Vladimir Safatle. Foto: Pedro Zambarda/DCM