Safatle: Renan fica no Senado por decisão da junta financeira governante
Da coluna de Vladimir Safatle na Folha:
Se alguém ainda tinha ilusões a respeito de o Brasil continuar como uma república, esta semana serviu para dirimir as últimas dúvidas. Ela termina com a reedição da antiga teoria medieval dos dois corpos do rei.
Um dos maiores historiadores do século 20, Ernst Kantorowicz ficou célebre por seus estudos sobre a especificidade da incorporação do poder na Idade Média.
Suas formulações apontavam, presente tanto no direito quanto nas representações políticas, para um duplo corpo do rei: o rei tem, ao mesmo tempo, um corpo mortal, corruptível, e outro imortal, incorruptível, sublime, que desconhece tempo.
Em algumas situações, lembrava Kantorowitz, chegou-se até a usar o corpo sublime contra o corpo perecível, julgando o rei em nome do rei.
O que não sabíamos é que Renan Calheiros também tem dois corpos. Um é réu em processo penal, por isso é corpo de suspeito de crime grave, o que o coloca como incapaz de assumir a função máxima de presidente da República. O outro é um corpo sublime, que não traz as máculas e as suspeitas do primeiro corpo e que, por isso, pode ocupar a presidência do Senado.
Enquanto não for chamado à função de substituto do “presidente”, Renan se apresenta à República com seu magnânimo corpo sublime. Quando ele aparecer na linha de substituto, Renan voltará a existir em seu vil corpo réu. O bom e probo Eduardo Cunha não foi contemplado com tamanha escolástica. Uma pena.
Que uma aberração desta natureza possa ter sido gestada à luz do dia não devia, no entanto, surpreender ninguém. Quem decidiu a permanência de Renan Calheiros na presidência do senado não foi o STF, mas a junta financeira que nos governa.
Renan é necessário para garantir a tramitação da PEC que congela os gastos públicos por 20 anos, enquanto libera do congelamento os bilhões pagos pelo governo federal com serviço e juros da dívida pública que fazem do sistema financeiro brasileiro um dos mais rentáveis do mundo.
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