Sakamoto: Por que Guedes fala mal dos pobres? O psicanalista Christian Dunker explica

DO BLOG LEONARDO SAKAMOTO
“Paulo Guedes diz coisas inapropriadas, mas elas são dirigidas para um determinado setor da elite econômica, um grupo que compreende da mesma maneira que ele a subnarrativa do lugar de ricos e pobres. Deixa claro que eles precisam se aliar contra os pobres, que usam demais os serviços públicos, que andam demais de avião, que vão a lugares que não deviam ir.”
A avaliação é de Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Ele é um dos coordenadores do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP e ganhador do prêmio Jabuti pelo livro “Estrutura e Constituição da Clinica Psicanalítica”.
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Para Guedes, segundo o professor, “economia é economia, moral à parte”. E, como a moral dupla de Freud, uma coisa é a corrupção dos outros, outra é a que a gente faz. Uma coisa é os outros levando vantagem, a outra é a vantagem que nós levamos.
“Com o emprego que não cresce e suas projetos polêmicos no Congresso, Guedes tem que desviar a atenção para alguma coisa. Caso contrário, começam a aparecer suas anáguas.”
Leia trechos da entrevista:
A quantidade de trabalhadoras empregadas domésticas com recursos para ir à Disney é muito pequena. Mesmo assim, a categoria foi lembrada pelo ministro como exemplo. Por quê?
Por que, para ele, a origem dos problemas do país é que tem gente fora do lugar. É metafórico. Imagine se todas elas começassem a fazer isso, o que iria acontecer? Ele não está pensando como economista, pois, se isso acontecesse de verdade, seria uma alavanca para a economia. Teríamos uma categoria gastando mais dentro e fora do país, garantindo mais fluxo e mantendo a economia aquecida. Mas ele está satisfeito com a circulação reduzida. Acredita que a democracia e o progresso é coisa para poucos.
Se a gente pegar o que Guedes está dizendo e colocar na boca de um economista qualquer, isso seria satirizado e a pessoa considerada por todos como alguém anacrônico. Mas, nesse tipo de discurso voltado a esse público, essa narrativa funciona. Porque está produzindo continuamente inimigos que não querem que o Brasil cresça. É parte de um discurso paranoico.
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Como isso é percebido junto a outros públicos, uma vez que Bolsonaro tem suporte considerável na classe média baixa, muitos dos quais sonham levar os filhos à Disney?
Não sei se você vai lembrar a propaganda do jogador de futebol Gerson [dos cigarros Vila Rica, de 1976, que levou à criação da “Lei de Gerson”]. Ele diz uma frase que ficou célebre: “gosta de levar vantagem em tudo, certo?” Esse “certo” é o vacilo narrativo do Guedes, que sela um pacto com o outro.
O que ele está dizendo é que “economia é economia, moral à parte”. E, portanto, vamos fazer o que for preciso para continuar a ganhar e faturar. Com isso, vai haver uma espécie de distinção entre o que acontece e o que vamos falar a respeito. A identificação que ele causa não é com o conteúdo, mas com a dissociação. É como Freud descreveu a moral dupla: os homens podem trair, as mulheres, não. Isso acaba sendo sempre a resposta do governo na área econômica, para que uma coisa não seja ligada à outra. Uma coisa é a corrupção dos outros, outra é a que a gente faz. Uma coisa é os outros levando vantagem, a outra é a vantagem que nós levamos. Nós e eles.
Mas o discurso dele está começando a fazer água, ficando entrópico. No começo do governo, estava preservada a ideia de que ele cuidava da economia, e ficava de longe das loucuras. Quando foi ao Congresso defender suas pautas, descobriu-se que não conseguia falar com as pessoas usando a linguagem dele. Agora, a pressão por resultados está aumentando, e, com ela, a fervura. Consequentemente, vai se aproximando da retórica do Bolsonaro para sobreviver.
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