“Sentimento de insatisfação que virou contra Renan pode virar contra o STF”, diz cientista político
O filósofo e cientista político Marcos Nobre deu entrevista ao El Pais:
Pergunta. No final do ano passado, logo depois de Eduardo Cunha deflagrar o impeachment de Dilma Rousseff, você disse que o processo era um mecanismo de autodefesa do sistema político. Funcionou?
Resposta. Por enquanto não, mas isso não significa que o sistema político não esteja tentando encontrar alguma maneira de se autoanisitiar. O problema é que quanto mais tempo passa, quanto mais delação aparece, mais difícil fica. A ideia inicial era tentar circunscrever a Operação Lava Jato à corrupção do PT. Era uma tática semelhante a do mensalão, em que figuras de alto escalão do sistema político foram entregues em uma bandeja e o resto se salvou. Só que dessa vez não deu certo. Do ponto de vista da insatisfação popular, a rejeição antipetista de certos setores virou uma rejeição à política como tal, já que a Lava Jato se estendeu por todo lado.
P. Na sua leitura, por que lá atrás a tática teve êxito e dessa vez não?
R. Por causa da maneira de operar da Lava Jato. O juiz Sergio Moro inventou uma espécie de linha de montagem processual penal. Ele não segue os passos clássicos de um processo, como aconteceu no mensalão, em que havia toda uma investigação, depois o estabelecimento de uma teia de ação e do universo de possíveis atingidos. Moro inverteu a lógica e passou a fazer um por um: esse sujeito vai me levar a outro e esse outro vai me levar a outro. Ou seja, só vai haver uma rede, uma narrativa mais consolidada, se, ao final, for possível montá-la. Quando essa lógica foi invertida, o sistema político entrou em pânico, porque já não é possível ter horizonte algum. Ninguém sabe onde isso vai acabar e qualquer acordo fica impossível. Por isso o impeachment não deu certo e, por isso, o Governo Temer está em uma situação praticamente insustentável.
P. Apesar das delações, é um Governo que conseguiu aprovar uma mudança na Constituição para aprovar o ajuste fiscal mais duro desde 1988. A situação é tão delicada assim?
R. A lógica do impeachment nunca foi a lógica das ruas. No começo das manifestações de 2015, ninguém pedia a deposição de Dilma Rousseff. Foi só depois de Temer sair da articulação política do Governo e dizer que o país precisava de alguém para reunifica-lo, que a energia foi canalizada para essa pauta. A mensagem dele, naquele momento, foi de que a porta estava aberta e de que ele trabalharia pelo impeachment. Acontece que, uma vez que ele colocou esse mecanismo em marcha, por que ele não pode se voltar contra ele? Esse era o drama na época do Collor, mas naquela época havia um projeto no horizonte. O Plano Real estava lá e a Lava Jato não existia. Agora qual é o projeto? Não há. Só há uma agenda negativa de cortes e cortes, como a PEC 55. Isso, somado ao fato de que o impeachment de Dilma não colocou ninguém a salvo, é explosivo. Se Temer não apresentar um novo Governo, se não conseguir convencer as pessoas de que é um novo Governo, ele não vai conseguir se sustentar até 2018.
(…)
P. Moro vem dizendo que ano que vem gostaria de morar nos Estados Unidos e parece pouco provável agora, mas já falou em encerrar a operação até o final deste ano.
R. Só que ela continua no STF. Ele terá que lidar com todos os processos com foro privilegiado que vão chegar lá. E aí está uma questão central do problema vivido hoje no Brasil. Quando eu digo que o sistema político não sabe o que fazer, estou incluindo também o Judiciário. Nunca considerei que a Justiça está fora desse sistema. O que quero dizer é que o STF terá problemas pela frente. No momento em que a Corte e as instâncias superiores foram concordando com os procedimentos controversos da Lava Jato, passaram a mensagem de que esse procedimento vale lá também. Como o STF vai fazer para julgar tudo o que vai chegar lá no ano que vem? O risco é que o sentimento de insatisfação que virou contra o Renan, que pode virar contra o Temer, também pode virar contra o STF.
P. Em algumas manifestações já teve pixuleco de juízes do Supremo…
R. Sim. Uma coisa é você ter um juiz de primeira instância, com dedicação exclusiva, que é o caso do Sergio Moro. Outra coisa é o funcionamento normal do Judiciário. Não foram apenas as sucessivas confirmações do trabalho da Lava Jato, mas também algumas decisões, como a prisão do Delcídio do Amaral, um senador em exercício de mandato, que colocaram em marcha uma maneira de funcionar que não cabe dentro do sistema. Acho que o STF vai receber uma bola de Curitiba que não está preparado para lidar. Se não se preparar, vai ser apedrejado. Não existe nenhuma figura, ou instituição, hoje que seja incontroversa.
P. Moro não é essa figura?
R. Não, de jeito nenhum. É só citar a divulgação do áudio em que a presidente aparecia falando, o caso do promotor que apresentou um PowerPoint esdrúxulo, e, mais recentemente, a foto de Moro em uma espécie de convescote com Aécio Neves. Essas coisas só são aceitas sem conflitos por um ódio antipetista ensandecido. Ele é uma figura controversa.