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Terraplanismo é o caso mais extremo do fenômeno de anticiência

De Javier Salas no El País Brasil.

Tem gente que acredita que a Terra não é uma esfera achatada nos polos, e sim um disco. Que a Terra é plana. Não é analfabetismo: são pessoas que estudaram o Sistema Solar e seus planetas no colégio, mas que nos últimos anos decidiram que todo esse negócio da “bola” é uma gigantesca manipulação. Apenas 66% dos jovens de 18 a 24 anos nos Estados Unidos têm plena certeza de que vivemos em um planeta esférico (76% na faixa de 25 a 34 anos). Trata-se de um fenômeno global, também presente no Brasil, que costuma ser motivo de piada. No entanto, quando observamos os mecanismos psicológicos, sociais e culturais que levam as pessoas a se convencerem dessa gigantesca conspiração, descobrimos uma metáfora perfeita que resume os problemas mais representativos de nossa época. Embora pareça medieval, é muito atual.

Rejeição da ciência e dos especialistas, narrações maniqueístas que explicam o complexo em tempos de incerteza, entronização da opinião própria acima de tudo, desprezo pelos argumentos que a contradigam, difusão de falsidades graças aos algoritmos das redes sociais… está tudo aí. “É o caso mais extremo, o mais puro”, resume Josep Lobera, especialista em sociologia dos fenômenos pseudocientíficos. Cada debilidade ou atitude desse coletivo está presente, de algum modo, em muitos dos movimentos políticos, sociais e anticiência que irrompem em nossos dias.

“[O fenômeno] nasce da desconfiança em relação ao conhecimento especializado e de uma maneira errada de entender o ceticismo”, afirma Susana Martínez-Conde, diretora do laboratório de Neurociência Integrada da Universidade Estadual de Nova York. Os estudos sobre os terraplanistas e outras teorias da conspiração indicam que eles acreditam ser os que agem com lógica e raciocínio científico. Em muitos casos, acabam presos na conspiração após tentar desmontá-la. “É absurdo. Vou desmentir que a Terra é plana”, diz Mark Sargent, um dos mais reconhecidos terraplanistas, no documentário que retrata o coletivo à perfeição, A Terra é Plana (Netflix). E acabou “afundando, como em um poço de piche”. A maioria dos terraplanistas não foi convencida; eles se convenceram ao se verem incapazes de demonstrar que, sob os seus pés, há uma bola de 510 milhões de quilômetros quadrados.

“Pesquise isso você mesmo”, dizem uns aos outros, como relata a psicóloga Asheley Landrum, da Universidade Texas Tech, que há duas semanas apresentou o resultado de seus estudos sobre os terraplanistas na Associação Americana para o Avanço da Ciência. O primeiro slide da conferência é uma imagem de Copérnico, pai da ideia de que a Terra orbita ao redor do Sol, reconhecendo que estava errado após passar cinco horas vendo vídeos terraplanistas no YouTube. Porque, segundo Landrum e sua equipe, que analisa esses fenômenos no projeto Crenças Alternativas, o YouTube é a chave. Todos os terraplanistas se fazem terraplanistas vendo outros terraplanistas no YouTube. E, uma vez que fazem parte dessa comunidade, é quase impossível convencê-los do seu erro, pois são ativados mecanismos psicológicos muito poderosos, como o pensamento motivado. Ou seja: eu só aceito como válidos os dados que me reafirmam; todos os demais são manipulações dos conspiradores. Como em outros movimentos, se a ciência me contradiz, então a ciência se vendeu.

“O YouTube parece ser a amálgama da comunidade da Terra Plana”, conclui equipe em seu trabalho mais recente, apontando essa plataforma de vídeos como a origem das vocações “conspiranoicas”. O grupo liderado por Landrum entrevistou a cerca de 30 participantes da Conferência Internacional da Terra Plana, e todos descreveram o YouTube como “uma fonte confiável de evidências” e um dos provedores mais populares para “notícias imparciais”, frente aos veículos manipulados. Haviam se tornado terraplanistas vendo vídeos na plataforma nos três anos anteriores. Muitos deles contaram que estavam assistindo a vídeos sobre outras conspirações (o 11 de Setembro, por exemplo) e foram atraídos pela história da Terra plana graças às recomendações do YouTube.

Muitos especialistas denunciaram como o algoritmo de recomendações do YouTube acaba se transformando numa espiral descendente rumo a conteúdos cada vez mais extremistas, manipuladores e tóxicos. E esse caso não é uma exceção. Como defendem os terraplanistas, o YouTube se tornou o terreno mais fértil para versões “alternativas” da realidade, onde se desenvolvem mensagens disparatadas e provocadoras à margem da “ciência e dos cientistas convencionais”. Sobre qualquer tema, da cura do câncer ao feminismo, passando pela astronomia, o habitual é encontrar as mensagens mais controvertidas entre os primeiros resultados da busca.

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Imagem da Terra feita da Estação Espacial Internacional. Foto: NASA