“Venha debater comigo, Olavo de Carvalho”, desafia antropóloga

Da antropóloga Débora Diniz, professora daUniversidade de Brasília e pesquisadora da University of Brown, na Revista Época.

Como intelectual acadêmica, tenho uma área de especialização e é sobre ela que gostaria de convidá-lo a uma conversa amigável. Sei que gosta dos temas com que trabalho, em particular a questão do aborto. Cada um terá seu tempo de apresentação, podemos ter réplicas mútuas, seremos gentis e falaremos a verdade. Para facilitar a participação da audiência, sugiro que um grupo independente de checadores de informação acompanhe nossa conversa. Nossos argumentos serão postos à prova no instante em que forem ditos. Nesses tempos de mentiras e notícias falsas, ofereceremos um momento de celebração à verdade.

Li suas postagens em que desdenha das universidades e dos professores, em que expressa suas inquietações sobre o que seja a vida universitária. Tive dúvidas sobre onde teria estudado, pois talvez fosse testemunho do seu tempo ou de sua experiência acadêmica. Busquei seu currículo na Plataforma Lattes, mas não o localizei. A publicidade da trajetória acadêmica foi uma conquista de transparência da ciência brasileira — o currículo Lattes não é como orelha de livro comercial ou postagem de mídia social em que cada um se adjetiva como bem quer.

No currículo Lattes, está a prova do que ousamos pronunciar como ciência. Se der uma espiada no meu currículo, verá que falo sobre aborto porque já fiz pesquisas, publiquei artigos e ganhei prêmios. Arrisco dizer que sou reconhecida na comunidade acadêmica internacional. Como tudo na ciência, até esse deslize de adjetivo no texto preciso comprovar. No meu caso, reconhecimento pode ser o prêmio Jabuti concedido ao meu livro sobre a epidemia de Zika no Brasil ou a recente homenagem da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard.

Como não localizei artigos de sua autoria na Biblioteca Scielo ou em qualquer outra base de periódicos científicos internacionais, desconheço os fundamentos de seus argumentos. Para ser sincera, ignoro sua área de especialidade, soube que foi astrólogo, define-se como filósofo e que oferece cursos nas mídias sociais. Peço perdão, mas meu conhecimento de astrologia é limitado, por isso o convido a falar sobre aborto — um tema que nos exige conhecimento de diversas áreas, da filosofia à saúde, da sociologia à história.

Todos temos opiniões sobre vários eventos da vida. Nossas opiniões permitem que nos aproximemos de algumas comunidades e nos afastemos de outras. Opiniões, no entanto, não são argumentos acadêmicos. Para ser um intelectual acadêmico é preciso se submeter ao método científico de busca da verdade. Quando publico um artigo em periódico científico, me submeto ao julgamento de colegas que desconheço, recebo pareceres de avaliação de minhas ideias, torno públicas as razões de minhas teses. É certo que nem todo escritor é cientista; um exemplo são os ficcionistas, escrevem o que imaginam, inventam histórias. Não sei se este é seu caso, mas se o for, não poderia chamá-lo de pesquisador acadêmico. Escritor é já um título honroso.

Não sei se já aplicou o método científico aos seus argumentos. Se não, valeria o experimento para o que alardeia sobre as universidades. Parta de suas crenças como hipóteses, submeta-as ao teste científico — se crê haver “bolinação” e “drogas” em sala de aula, monte um protocolo de pesquisa, colete evidências, escreva um artigo, publique em um periódico. Só aí discutiremos seus argumentos. Antes disso, suas ideias são como opiniões de gente de bem ou fantasias de ficcionistas. Mas até para ser um professor, recomendaria aprimorar seus métodos.

(…)

Aceite meu convite como uma honra ou como um desafio. Aborto é uma questão de saúde pública no Brasil. Mulheres comuns fazem aborto, esta não é minha experiência nem a sua, por isso falaremos em nome da ciência. Pode ser a ciência dos números ou a do testemunho, a epidemiologia ou a antropologia. Quanto mais conversarmos sobre o tema mais as pessoas se informarão, pois os checadores da verdade qualificarão nosso debate. Essa poderá ser uma experiência transformadora, inclusive para que possa abandonar o uso das aspas no título “intelectual acadêmico” e, quem sabe, usá-lo para si próprio sem transformá-lo em citação.

Pedro Zambarda de Araujo

Escritor, jornalista e blogueiro. Autor dos projetos Drops de Jogos e Geração Gamer, que cobrem jogos digitais feitos no Brasil e globalmente. Teve passagem pelo site da revista Exame e pelo site TechTudo. E-mail: pedrozambarda@gmail.com

Disqus Comments Loading...
Share
Published by
Pedro Zambarda de Araujo

Recent Posts

“Se salvou por minutos”: Michel Teló conta que tragédia no RS quase mata seu tio

Michel Teló usou as redes sociais para contar que quase perdeu um tio na tragédia…

5 horas ago

Deputada ligada Michelle Bolsonaro está em estado grave em hospital de SP

A deputada federal Amália Barros (PL-MT) está em estado grave e sob cuidados intensivos no…

5 horas ago

TSE marca julgamento de recursos que podem cassar mandato de Sergio Moro

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) está programado para julgar os recursos que solicitam a cassação…

5 horas ago

Jornalistas da Globo são atacadas na web por combaterem fake news sobre RS

As apresentadoras Daniela Lima e Ana Paula Araújo estão sendo atacadas nas redes sociais por…

5 horas ago

Lula ironiza teoria da conspiração bolsonarista e abraça “clone” em AL

Na última quinta-feira (9), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) debochou das teorias…

5 horas ago

Público de Madonna foi de quase metade do 1,6 milhão divulgado, diz Datafolha

O show de Madonna na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, atraiu uma multidão,…

6 horas ago