Eu, brasileiro, vítima de racismo em Paris por não ter “perfil francês” — ou seja, parecer árabe. Por Willy Delvalle

Atualizado em 20 de janeiro de 2018 às 7:07
Willy

Antes de vir para a França, eu tinha medo de ser alvo de racismo. Minha pele não é branca e meus traços podem ser facilmente confundidos com alguém do Oriente Médio, do Paquistão ou do norte da África, lugares estigmatizados de terrorismo. E por que o medo na França? Porque depois de inúmeros atentados, a “ameaça terrorista” parecia ter virado salvo-conduto para uma caça às bruxas. O que eu temia aconteceu.

A primeira vez foi em setembro do ano passado. Estava na fila para entrar numa balada em Paris. Na minha frente, estava um grupo de rapazes que não falavam bem nem francês, nem inglês. Eram morenos como eu. Tinham barba. Quando chegou a vez de entrar, um deles tomou a frente. O segurança, negro, disse: “você não vai entrar”. Ele resistiu: “daqui eu não saio”. O segurança: “por favor, saia!” E ele não saiu. “Já é a segunda vez que você vem aqui. Saia”, disse o segurança. O homem falou: “isso é racismo!” e permaneceu parado. O segurança deu-lhe um soco no rosto.

O rapaz pegou uma das barras que fazia a divisão da fila e a levantou para ameaçar o segurança. Disse algo do tipo: “seu preto maldito!” Enquanto isso, seu colega aparentemente ligava para alguém. O segurança e outro funcionário da casa pareciam temer que ele ligasse para a polícia, até que alguém disse: “ele só está tentando provocar”. Em seguida, o segurança me disse “por favor, saia!”, colocando a mão no meu ombro, me conduzindo para fora. Eu disse: “eu não estou com eles!” Ele reagiu com um ar de surpresa. Certamente não imaginou que eu falava francês. Seu colega de trabalho confirmou: “ele estava na fila”. Fui liberado.

Ao fim da festa, perguntei ao mesmo segurança: tudo bem? Ele disse que sim, que há noites tranquilas e outras nem tanto. E por que aquele homem foi impedido de entrar? “É um ladrão conhecido no bairro”. Acredita-se que é indiano. O que eu não perguntei é porque, no fundo, já imaginava a resposta. Por que ele achou que eu estava com eles? Se minha pele fosse branca, meus cabelos fossem loiros e meus olhos azuis, teria agido do mesmo modo?

Alguns poderiam dizer que a atitude do segurança foi sutil demais para que fosse chamada de racista. Mas só quem vivencia o racismo sabe como a sutileza agride. Que cena paradoxal! O segurança, acusado pelo “indiano” de racismo, o agrediu fisicamente e, em seguida, foi vítima de racismo, para depois também cometer um ato racista, contra mim. Confesso que daquela vez não doeu quase nada, se comparado com o que aconteceu na semana passada.

Eu estava num supermercado. Percebi que um dos funcionários passava supervisionando alguns produtos – frios – do meu lado. Pensei: é o gerente. Mas a maneira como olhava os produtos me chamou a atenção. Parecia checar com atenção demais se tudo estava em ordem. Uma pessoa mais desconfiada até poderia dizer que ele era performático, que era atuação. Continuei escolhendo o que ia comprar e fui para a fila do caixa. Ele estava na porta. Percebi que não era gerente. Era segurança. Ele me olhou fixamente nos olhos por vários segundos. Saí da fila e fui buscar um produto que esqueci. E lá estava ele de novo.

Na minha vez, ele estava de volta ao seu posto. Paguei com gosto os produtos. O meu sentimento de “orgulho” ao fazê-lo era na verdade uma estratégia psicológica do meu próprio eu, uma reação à suspeita de que fui alvo, à suspeita de que eu era um ladrão. E por que eu? Por que um ladrão? De novo: se a minha pele fosse clara, os cabelos loiros e os olhos azuis, seria suspeito do mesmo jeito?

Ao sair, percebi o agravante da situação: a minha roupa, a mesma que eu usava dentro de casa, uma calça esportiva, uma blusa, e a única coisa diferente para o frio do lado de fora, um cachecol. Por que chamo a roupa de “agravante”, como se fosse um crime?

Uma pesquisa chamada “Les faciès du contrôle”, algo como A face da fiscalização, publicada em 2015, mostra o meu “erro”. Fala das características das pessoas mais abordadas pela polícia, de acordo com entrevistas realizadas com jovens de uma universidade.

Se for homem, a chance de ser abordado é muito maior. Se não for branco, nem se fala. Homens não brancos são 124% mais abordados. O look é um agravante. Dos entrevistados que disseram ter sido abordados, 58% vestia uma calça como a minha; 76% usava boné; 53%, um capuz. Outros elementos também compunham o look, porém menos presentes, como barba, piercing, dreads, tatuagens… O que mais é mais incidente é aquilo que curiosamente os jovens árabes e negros costumam vestir. Uma roupa simples, barata.

Um dia, uma cena me marcou. Um jovem cercado por mais ou menos dez policiais, numa estação de trem. Que desproporção! Dez contra um. Pareceu covardia. Seu look? O da pesquisa. A calça? O mesmo estilo da que eu usava. O que justifica a abordagem dele é a “ameaça terrorista”, presente nas mensagens espalhadas pelos ônibus, metrôs, trens, prédios… “Se você notar algum comportamento estranho, ligue para…” ou “chame um de nossos funcionários”, “ladrões estão presentes na estação”. Mas e se ele não for um terrorista, um ladrão? Terá sido colocado em suspeição “à toa”, o único em toda a estação a ser abordado?

É isso que une o caso dele, o da pesquisa e o meu. Existe um perfil digno de suspeita. E praticamente todas as vezes que vi alguém ser “cercado” (mais do que abordado) pela polícia, era assim: um jovem, vestido de modo simples, com traços aparentemente árabes.

É difícil saber se essa lógica foi da sociedade para o Estado ou o inverso. De todo modo, na França, ela foi institucionalizada pela Lei do Estado de Urgência, que torna permanente a presença do Exército nas ruas, permitindo a entrada dos agentes na casa de “suspeitos” e a privação de sua liberdade de ir e vir, proibindo-lhes de sair da região onde moram. Lembra a postura da polícia brasileira contra quem mora nas favelas ou é negro.

Um jovem francês me contou que seus amigos negros foram colocados num carro da polícia e estapeados. Como os jovens negros dos Estados Unidos, realidade citada no filme “Três anúncios para um crime” (veja abaixo o trailer), que conta a história de uma mulher que resolve protestar contra a polícia, que no lugar de investigar o caso da filha estuprada e morta, tortura garotos pretos.

Lá é a terra de Trump, que quer fazer a América grandiosa de novo, impedindo e estigmatizando imigrantes de “países terroristas”. Uma lógica que parece importada para cá, a terra da Declaração dos Direitos do Homem do Cidadão, que diz no seu primeiro artigo que “os homens nascem livres e permanecem iguais em direitos”. Mas diz também que “as distinções só podem se dar em função da utilidade comum”.

E o que seria essa utilidade comum? Hoje, o combate ao terrorismo? A Anistia Internacional condena a atual legislação. Denuncia a fragilidade das acusações de “suspeição”. Aponta a recorrente escassez de evidências para tal. E o que vemos são as consequências se disseminarem pelas relações sociais.

Um dia, perguntei a uma estudante universitária muçulmana e de origem argelina como era ser árabe na França. “Uma experiência peculiar”, respondeu. Ela me contou que já foi ofendida por diversas vezes na rua. E que ninguém nunca saiu em sua defesa.

Ouviu frases como “volta pra sua casa”, muitas vezes numa alusão à sua vestimenta, uma espécie de véu que a cobre até o chão. Perguntei era assim se antes dos atentados. Ela disse que não. Mas não é que não existissem comportamentos racistas ou xenófobos. “Era como se fossem contidos. Com os atentados, é como se tivessem ganhado legitimidade. Algo do tipo: viu como nós tínhamos razão?”

Depois de disputar as eleições presidenciais contra Marine Le Pen, a extremista de direita favorável ao fechamento de fronteiras, Macron propõe a revisão da lei de imigração, como observa o jornal Le Parisien: “candidato, elogiava a política de Angela Merkel (de acolhimento dos imigrantes). Eleito, em setembro disse a uma marroquina: ‘se você não está em perigo, então retorne ao seu país’”. O objetivo é obter uma legislação mais “eficaz”.

Assim, aquela nação que um dia evocou a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, valores estampados em qualquer prédio público da França, dá lugar à realidade de jovens estapeados pelo Estado, cerceados de seus direitos de ir e vir, colocados em suspeição, em casa, na rua, na estação de trem, no supermercado, ou na fila da balada. São jovens que compõem uma geração, cujo cerco vai se fechando contra quem não tem o “perfil francês”. A consequência não será a paz. Temo que um ditado se torna cada vez mais real: “quem com ferro fere, com ferro será ferido”.