Tive uma formação que seguiu os ritos das famílias católicas no Brasil; por contingências da vida, com três parceiras diferentes, me vi impelido a enfrentar abortos. “O búzio e a pérola: aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar.” Leão de Formosa.
Neste momento em que a discussão sobre o aborto entra na campanha pelas portas dos fundos, da hipocrisia, da indigência intelectual e da falta de compromisso com a realidade brasileira, penso ser importante que nós, a dita sociedade formadora de opinião – sim, nós existimos -, nos manifestemos.
Sou católico e tive uma formação que seguiu os ritos das famílias católicas no Brasil. Por contingências da vida, em três diferentes oportunidades, com três parceiras distintas, há muito tempo, eu me vi impelido a enfrentar um aborto. Em nenhuma das três situações eu desejava que o aborto acontecesse, mas respeitei, com dor e resignação, a decisão da mulher.
Na primeira, eu era muito jovem e sem nenhuma condição financeira. Vários amigos não hesitaram em apontar um “aborteiro”. Além da pressão e do sentimento de perda e medo, tivemos que enfrentar um ambiente desagradável, onde as pessoas na fila indicavam que havia um grande risco de algo dar errado. Durante o procedimento, eu mesmo precisei soltar a mão dela, que segurava em solidariedade, para ajudar a concluir o aborto, pois caso contrário ela teria morrido. Foi uma recuperação extremamente difícil e traumática, pois ela reteve placenta, inchou muito e sentiu dores horríveis. Foi necessário buscar ajuda médica; em suma, um verdadeiro calvário. Nossa relação também chegou ao fim ali.
No segundo caso, a parceira tinha boa situação financeira. Optou pelo melhor hospital da cidade, internou-se com seu médico de confiança e retornou ao trabalho no dia seguinte. Desconheço as dores indescritíveis que ela enfrentou na época, pois nossa intimidade não alcançava esse nível. Ela também se tornou um rosto apagado em minhas memórias, mas ainda carrego essa sombra comigo.
Na terceira situação, a parceira não pôde realizar o aborto em um hospital da cidade, pois era muito conhecida. Nada que uma rápida viagem ao exterior não pudesse resolver.
Agora, vejo que o aborto está dominando a campanha presidencial. A pergunta errada, covarde, maliciosa e desonesta é: “Você é a favor do aborto?”. Ora, ninguém em sã consciência é a favor do aborto, e isso não é o que está em discussão, exceto para marqueteiros e fanáticos religiosos.
O que deve ser motivo de reflexão é a realidade corajosamente exposta pelos grandes veículos de comunicação: aproximadamente 1,1 milhão de abortos clandestinos são realizados a cada ano no Brasil; a cada dois dias, uma mulher morre em decorrência de um aborto clandestino; segundo dados do SUS, que presumem que o número seja muito maior, são registradas 200 mortes por ano. Isso sem mencionar as mulheres que morrem pelo país sem sequer serem contabilizadas como estatísticas.
]No ano passado, 184 mil mulheres que abortaram clandestinamente e tiveram complicações foram atendidas pelo SUS para curetagem; em 12 anos, o SUS realizou mais de 3 milhões de curetagens no Brasil. O fato concreto é que uma em cada cinco brasileiras com até 40 anos já passou por um aborto e mais de 5 milhões de brasileiras enfrentaram esse trauma.
É a realidade batendo em nossas faces e clamando para ser enfrentada pelo que é: um grave problema de saúde pública! Se os dois candidatos, que honram o Brasil com seus currículos, concordassem em abordar conjuntamente esta questão, estariam retirando essa discussão do obscurantismo e lançando um pouco de luz sobre as trevas que envolvem e obscurecem a vida de tantos brasileiros, homens e mulheres.
ANTONIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, conhecido como Kakay, é advogado criminalista e foi secretário do Conselho de Direitos da Pessoa Humana no governo Sarney.
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