Eu também vou estar ali, filha

Atualizado em 2 de agosto de 2011 às 19:47
Com Camila quando ela era bebê

Escrevi o texto abaixo  para Camila em meados de 2008. Foi publicado na revista Época São Paulo, que acaba de ser lançado, Não sei se ela chegou a ler. Reproduzo-o aqui, mais que tudo, porque ele reflete o tamanho do que sinto pela jovem ruiva que se tornou minha parceira literária recentemente nos casos policiais deSouza, um detetive “descompromissado”

Não sei se você vai ler isso, filha. Você é tão menina, e acho que você choraria se lesse isso hoje. Talvez outra hora. Vou fazer que nem aquele professor americano que, com os dias contados, deu uma aula de como morrer, e como viver, a uma platéia enlevada. A aula acabou no YouTube, virou um fenômeno mundial, e o professor disse que a primeira razão de ter feito o que fez foi mostrar aos filhos o quanto os amava. Ele disse que sua mensagem era como uma garrafa com palavras jogada ao acaso da água do mar. Talvez a garrafa seja encontrada e o conteúdo lido, talvez não. O que escrevo talvez seja lido por você, pedaço adorado de mim, talvez não. Jogo dados com o destino, para usar uma frase de Einstein.

Fiquei tocado com o que você me disse outro dia, filha. Não, não quero voltar a nascer, você disse ao entrar no carro na hora em que a busquei em sua avó. Você tão garota, e palavras tão profundas pronunciadas com a ênfase necessária, os pequenos olhos brilhantes molhados. Mas a voz firme. Imagino que alguém tivesse falado com você sobre reencarnação. Que eu poderia responder além de que eu também não? Nascer em outra família? Ter outro pai que não o que eu tive? Outra mãe? Outros irmãos? Outros filhos? Outros amigos? Outra filha que não você, pedaço adorado de mim?

Não. A idéia é insuportável para mim. E naquela conversa que tivemos vi que para você também. Filha. Minha vida seria miseravelmente triste sem você. Não é que eu não queira outra vida. Eu desprezo, eu renego o que quer que seja que signifique viver sem as pessoas e os lugares que amo. Filha. O professor americano está morrendo, e tem uma filhinha pequena. Menor que você. Ela não entende as coisas direito ainda. Ele disse que quer que ela saiba, quando crescer, que ele foi o primeiro homem que se apaixonou por ela. Achei isso lindo, triste, é verdade. Mas mais lindo que triste. Uma declaração de amor sublime. A sensação de que foi tão amada pelo pai morto tão cedo haverá de dar força à pequena filha do professor na hora certa.

Filha. Eu também. Fui o primeiro homem a se apaixonar por você, e se há uma coisa certa é que nenhum outro a amará mais do que eu, por mais que a ame. Sua pequena mala. Quando ela está em casa o papai fica muito feliz. A cabeleira rebelde ruiva vai dominar e alegrar a casa. Um dia você terá idéia de como ver a seu lado as trapalhadas de Michael e Dwight, ou as de Joey e seus amigos, tornou a vida do papai melhor. O jeito furtivo como olho com adoração para você quando você está entretida com Michael. Se você um dia ler o que estou escrevendo, queria que você levasse sempre essa imagem com você: meu olhar furtivo e amoroso para você. Gosto da forma sutil como você cobra minha atenção ao ver as comédias, quando ameaço pegar um livro ou uma revista, e gosto ainda mais quando você coloca seu travesseiro na barriga do papai e põe sua pequena cabeça dourada nele.
Nada nos tirará isso, filha. Pode parecer bobagem o que estou escrevendo, mas o tempo vai mostrar a importância das nossas noites cômicas.

Com Camila, agora adolescente, em Londres

Mais para a frente vou colocar Rei Leão para vermos juntos. Lembro que você chorou na primeira vez, mas na segunda talvez a gente consiga alguma coisa além das lágrimas. Ali há uma lição, assim como na mensagem do professor que está morrendo. O ciclo da vida. Me ocorreu uma frase de um filósofo chamado Sêneca que levo sempre na mente. Ele estava escrevendo a um discípulo, Lucílio. “Por mais que te espantes, aprender a viver não é mais que aprender a morrer.” Passamos tanto tempo atormentados pela idéia da morte, esmagados pela finitude das coisas, que morremos mil mortes antes de finalmente morrermos. Este o sentido da frase da Sêneca. Espero que você um dia você leia Sêneca, filha. Viver sem o terror da morte é viver uma vida bela, não importa a quantidade de anos. É esse o ensinamento de Sêneca, e também o do professor americano. As pessoas pensam que falar de morte é mórbido, mas não é, filha. O que na verdade faz mal é não falar de morte, como se ela não existisse. Se falamos dela, se a encaramos com naturalidade, vivemos uma vida boa. Se fingimos que ela não existe, somos esmagados pelo seu fantasma a cada dia.

A cena do Rei Leão que quero ver com você é aquela em que o Simba e seu pai contemplam do alto da montanha a imensidão do céu e as estrelas. De alguma forma estarei ali, sempre olhando por você, diz o pai a Simba com voz grave e firme, cheio de força e sabedoria. Eu também estarei ali sempre olhando por você, Camila, pedaço adorado de mim.