
A pessoa que mais amei na minha vida foi meu pai. Uma figura única, autêntica, bem-humorada, alegre e com uma resposta sempre pronta para tudo. De uma coragem indômita que beirava a irresponsabilidade. E muito amor. Muitos beijos e abraços. Muito carinho. Infinitos. Sem nenhuma vergonha de ser feliz, de se entregar e de se dedicar ao afeto. Quase analfabeto, sabia ler o mundo como ninguém e, principalmente, conseguia ler as pessoas. Entendia a alma humana, o que não se aprende nos livros. Fisicamente, era um touro. Nunca teve ressaca e bebia não os vinhos que bebo, mas o que a vida à época oferecia. E era um amante do amanhecer; independentemente da noite, o romper da aurora era uma referência. De preferência, montado a cavalo.
Papai nunca ficava doente e não ia ao médico. Um dia, perto dos 80 anos, começou a tossir, e minha mãezinha o convenceu a procurar um profissional. O médico, inconsequente, fez um raio-X do pulmão e deu a sentença de morte: câncer! À época, essa palavra era mais maldita do que é hoje. Para a geração do meu pai, era morte certa. Ele ficou, pela primeira vez, abatido. Com um diagnóstico precipitado, feito por uma imagem de raio-X, levei-o a um grande oncologista em São Paulo. Após um exame, o médico afirmou que era uma irresponsabilidade do médico de Brasília. Meu pai não tinha nenhuma doença. Erro médico crasso. À noite, no hotel, ele confidenciou à minha mãe: “Kakay é muito amoroso: pagou o médico para dizer que não tenho câncer”. Nada o convenceu. Depressão. Fraqueza. E morte, em pouco tempo.
Passaram 25 anos e eu sigo a minha vida pensando nele. Não vou ao médico, nunca tive dor de cabeça ou ressaca, como e bebo de tudo. E bem. A diferença é que adoro fazer exercício. Corro uma hora todos os dias, nunca fumei e faço pilates e musculação.
Aí, um dia, comecei a tossir. Como a tosse incomodava as pessoas, fui ao médico. Quase 70 anos sem nenhum exame. Só tinha ido ao médico quando tive um grave acidente há 50 anos, com 500 pontos no rosto. Olho furado. Cego de um olho. Mais de 100 cacos de vidro ainda hoje no meu seio frontal. Na cabeça. Enfim, fui dar uma geral com a excelente medicina do Sírio-Libanês. Após uma série de bons resultados sobre a saúde como um todo — os médicos sem entender como eu, “com esta idade, sem remédio, tenho a saúde tão boa” —, veio o diagnóstico terrível: câncer nos rins.
Lembrei-me do papai, mas o meu câncer era verdadeiro. Na realidade, não me abateu; confio na medicina, embora não queira muito lidar com ela. É um pouco como a advocacia criminal: quando necessária, é imprescindível.
Em dois dias, sem comentar e acreditando nos profissionais, internei e fiz uma ablação. Queimei o maldito. Matei-o. O médico pediu uma revisão em seis meses. Fiz a revisão e o resultado foi que acabou. Não era preciso sequer lembrar que tive. Aqui entre nós, eu já não me lembrava mesmo.
Agora que passou, resolvi vir a público e contar do câncer que venci. Muito em homenagem à minha querida amiga Roseana Sarney, que enfrenta um câncer assassino e feroz. E o faz com um sorriso lindo e uma coragem admirável. Ela já enfrentou outros e sabe que este é cruel. Mas acredita na vida e não perde o humor nem a alegria. Acompanho sua luta, através da dor, da agonia e do amor imensurável do meu grande amigo José Sarney. Penso que a Roseana é a pessoa que ele mais ama no mundo.
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É assim, entre tantos amores e paixões, que a gente enfrenta as dificuldades da vida. O meu câncer, felizmente, foi um “cancerzinho”, se comparado ao dela. Mas o do meu pai, que nem câncer era, matou-o pelo estigma.
Por isso, é necessário falar dessa praga, contar o que se tem e dizer que estamos enfrentando. Cada um com sua verdade. Mas acreditando que nós, privilegiados, temos a medicina de ponta para nos acompanhar. E muito amor, humor e vontade de viver.
E é bom nos lembrarmos de Eduardo Galeano:
“O medo ameaça.
Se você ama, terá Aids
Se fuma, terá câncer
Se respira, terá contaminação
Se bebe, terá acidentes
Se come, terá colesterol
Se fala, terá desemprego
Se caminha, terá violência
Se pensa, terá angústia
Se duvida, terá a loucura
Se sente, terá solidão.”