Por Aldo Fornazieri
Leituras de setores liberais e de esquerda acerca dos resultados das eleições presidenciais dos Estados Unidos, que marcaram o retorno de Trump à presidência, e das eleições municipais do Brasil, que garantiram vitórias dos setores de centro-direita, sugerem que os resultados, ao menos em parte, se devem aos discursos antissistema dos candidatos e políticos desses agrupamentos ideológicos. As análises enfatizam, particularmente, que a extrema-direita que cresce em vários países é antissistema. Trata-se de um equívoco que pode levar ao aprofundamento dos graves erros políticos que as esquerdas vêm cometendo. Além da direita não ser antissistema, toma-se o efeito pela causa.
Incapazes de autocrítica e de olharem para seus próprios erros representantes e intelectuais de esquerda buscam uma profusão de explicações para as derrotas eleitorais: culpa do individualismo dos empreendedores da periferia, dos evangélicos, dos pobres de direita, das políticas e dos movimentos identitários etc. O sociólogo Jesse de Souza contou com a concordância de Guilherme Boulos na afirmação da tese de que o Brasil pode se tornar uma espécie de Irã fundamentalista. Como se trata de uma afirmação espantosa, voltemos à ideia de que a extrema-direita é antissistema.
A essência do discurso de Trump e das variações de extrema-direita em vários países não é e nunca foi de sentido rupturista, mas restauracionista. O restauracionismo de extrema-direita tem alguns vértices: a restauração religiosa que busca valores e modos de vida no passado, a restauração política de sentido nacionalista e neofascista, a restauração da vez, de vozes, de empregos e de condições de vida de pessoas que foram sendo deixadas de lado pelas mudanças econômico-sociais no trânsito do século XX para o século XXI. Os trabalhadores brancos, mas também negros e latinos, responderam ao chamado de Trump radicado em promessas restauradoras de um passado melhor do que o presente legado pelo Partido Democrata.
Os perdedores da Era da sociedade industrial tendem a apoiar a extrema-direita. Os vencedores da globalização e da transição digital tendem a apoiar a centro-direita liberal. Isto ocorre tanto nos Estados Unidos, quanto na França. As esquerdas ficam nas margens desse jogo, pois não têm programa para abordar esses interregnos, essas conjunturas de transição.
O discurso de Trump se dirigiu menos contra o sistema institucional ou capitalista e mais contra o poder das elites corruptas que abandonaram o sonho americano, a prosperidade americana e a primazia nacional. O ódio aos imigrantes, a misoginia e outras formas de preconceitos, em parte, integram o arcabouço ideológico do trumpismo evangélico e, em parte, se trata de ardis de campanha do candidato.
Agora, no processo de formação de sua equipe de transição e de sua futura equipe de governo, o que mais predomina no em torno de Trump são representantes das grandes corporações dos país, tendo como expressão máxima Elon Musk.
Nem Marine Le Pen, nem Giorgia Meloni, nem Bukele e monos ainda Bolsonaro são antissistema. A ideia de que a extrema-direita é antissistema está levando setores de esquerda a uma acomodação ao sistema. O fato de que é necessário defender a democracia e o Estado de Direito não significa que é preciso abandonar a perspectiva de tensionamento do status quo da democracia liberal, que é elitista e excludente. O risco que as esquerdas correm é o de se tornarem coadjuvantes de um sistema opressor e corrupto, que exclui, que depreda o meio ambiente, que marginaliza, que empobrece e que mata as pessoas por diversas e perversas formas.
O prefeito de Araraquara, Edinho Silva, provável futuro presidente do PT, concedeu uma entrevista ao UOL News, criticado a suposta polarização promovida pelo partido, pois ela faria crescer o discurso antissistema da extrema-direita. Diz-se “suposta” porque, de fato, o PT não polariza. No Congresso, lugar por excelência dos embates políticos, os parlamentares petistas se tornaram caudatários de Arthur Lira. As ruas foram abandonadas pelas organizações de esquerda, que abriram mão também dos territórios das periferias entregues aos evangélicos, aos movimentos assistencialistas e ao crime organizado.
Edinho propõe “romper o ambiente de polarização”. Mas como ficar fora da polarização em face de um inimigo que aposta na radicalização? Em jogos de futebol quando os zagueiros recuam e correm para trás diante de um ataque inimigo veloz e eficiente, normalmente o time defensivo leva gols. Edinho está propondo que o PT e as esquerdas corram para trás. Não tem sentido político. Os vencedores das eleições municipais são os partidos mais arraigados defensores do sistema.
Sugerir que as esquerdas precisam ir mais para o centro, abandonar a polarização, porque o eleitorado se inclina à direita, significa atribuir os partidos e os líderes o papel de conduzidos, caudatários, do movimento eleitoral. Líderes e partidos existem para dirigir, comandar, conferir direção e sentido à sociedade. Claro que é preciso compreender as mudanças, a sociedade, a economia e o nosso tempo. Que o governo procure se apresentar como o ponto de unidade nacional, tudo bem. Mas que os partidos recuem perante o avanço da extrema-direita e da direita trata-se de apostar na ampliação da derrota.
Não foi o antissistema que derrotou os partidos de esquerda. Nem a abstenção é o antissistema. Ela é desencanto, desmotivação e desilusão com o sistema político-partidário. Uma eleição tem múltiplos fatores que determinam vitórias ou derrotas: rejeição, leituras equivocadas da conjuntura, marketing, política na internet e nas redes, capacidade de mobilização, compreensão das demandas sociais, presença e representação social etc.
Adotar uma postulação programática clara, firme e mudancista não significa que não se possa fazer alianças pontuais com setores de centro para derrotar a extrema-direita quando se faz necessário. Foi isso que a esquerda fez para evitar a vitória da Reunião Nacional no segundo turno das eleições francesas.
O embate com a extrema-direita não pode ser confundido com uma retórica formalística e vazia. Precisa fundar-se em valores humanistas contrapostos aos valores tradicionalistas e conservadores, na universalização dos direitos humanos, na articulação da transição ecológica com a transição digital, em programas que estruturem cidades digitais que forneçam serviços eficientes às periferias e aos grupos vulneráveis, desenvolvendo práticas de compartilhamento e a economia do bem comum. É preciso integrar as cidades com espaços ecológicos e adotar um programa de desenvolvimento sustentável no sentido forte, imbricado com rupturas com as formas capitalistas predadoras e opressoras nas relações com a natureza e dos seres humanos entre si.
Os trabalhadores sempre enfrentaram dificuldade para viver. Agora as classes médias também enfrentam vicissitudes. Se a sua renda é maior, os gastos também o são. Manter educação, saúde, habitação, inúmeras taxas de serviços, cultura, alimentação esgota quase toda a renda dos setores médios. Muitos trabalhadores e perderam renda e direitos pelo recuo da sociedade industrial. Os novos trabalhadores e as classes médias têm suas rendas saqueadas pela sociedade digital. Tudo isso gera ressentimento, medo e incertezas, terrenos propícios para a proliferação do ódio. Essa é a realidade do nosso tempo. As esquerdas não podem ficar fora do tempo.
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