Ex-ministros da Saúde denunciam o obscurantismo bolsonarista na questão da cannabis medicinal

Atualizado em 27 de novembro de 2019 às 15:42
O ministro Osmar Terra (Cidadania) suspendeu um edital para a seleção de obras de audiovisual independentes que seriam veiculadas em TVs públicas (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Após seguidas manobras do diretor da Anvisa indicado pelo governo Bolsonaro, a regulamentação do plantio de cannabis para fins medicinais e de pesquisa parece finalmente próximo de um desfecho, que pode beneficiar milhares de brasileiros que precisam desse medicamento. Depois de pedir vistas do processo e extrapolar o prazo regimental de análise, o diretor se comprometeu a voltar com o tema na próxima reunião da Diretoria Colegiada do órgão, prevista para terça-feira (3/12).

Inicialmente, a regulamentação foi colocada em pauta pelo diretor-presidente da Agência e relator da matéria na reunião do dia 15 de outubro, após processo de ampla participação social, com realização de audiência pública, consulta pública, consultas dirigidas e discussões em comissões no Congresso Nacional.

Entretanto, depois da leitura do voto favorável do relator pela regulamentação do plantio de cannabis para fins medicinais e de pesquisa e também do procedimento específico para o registro de medicamentos à base dessa planta, as matérias foram alvo de pedido de vistas por dois diretores.

Agora, quando o tema voltar para análise do colegiado, um dos diretores da Agência, notoriamente favorável à regulamentação, não participará da votação, em razão do término de seu mandato. Mais uma vez, houve manobra dos diretores alinhados ao governo, os mesmos que pediram vistas, já que a votação poderia ter ocorrido na reunião da última terça-feira (26/11).

Mas, sob forte pressão, especialmente do ministro da Cidadania, Osmar Terra, o tema foi novamente adiado para reunião futura, com ausência já confirmada de um dos diretores favoráveis ao tema.

Como de costume, desde que Bolsonaro assumiu o governo, o debate sobre o plantio de cannabis para fins medicinais e de pesquisa foi contaminado pela chamada “questão ideológica”, com ataques sistemáticos do ministro da Cidadania contra a questão.
Apropriando-se de um discurso obscurantista e retrógrado, Terra bradou aos quatro cantos que liberação da maconha para fins medicinais “abre portas para consumo generalizado”.

Para sustentar sua tese, o ministro fez uso, inclusive, de afirmações falsas sobre o tema, dentre as quais de que a Anvisa estaria contrariando a legislação se permitisse o plantio da maconha para fins medicinais ou científico, algo que já é previsto desde 2006 pela Lei de Drogas, ou de que toda a propriedade medicinal da maconha estaria restrita ao canabidiol, sendo que há remédios à base de THC, em outros países, por exemplo.

Aliás, parece ser esse um dos expedientes recorrentes do atual governo: difundir informações falsas para confundir a sociedade.
Acontece que, diferentemente do que afirma o ministro, as propostas da Anvisa não tratam da legalização da maconha ou da abertura das portas para o consumo generalizado da planta.

É uma questão científica, algo que parece custoso ao governo obscurantista de Bolsonaro, que já demonstrou seu total desprezo pelas nossas universidades e pela ciência, quando congelou e cortou bolsas de pesquisa científica de milhares de estudantes brasileiros.
As recentes descobertas científicas apontam para os efeitos positivos no uso de derivados da planta no tratamento de dores crônicas, esclerose múltipla, epilepsia e outras condições neurológicas desafiadoras, como o controle dos sintomas da doença de Parkinson. Justamente por isso, o plantio controlado tem sido regulamentado em diversos países e não tem sido alvo de questionamentos da Organização das Nações Unidas (ONU).

Cabe ressaltar que, desde 2014, famílias brasileiras têm conseguido na justiça o direito de importar produtos à base de cannabis para o tratamento de crianças portadoras de epilepsia refratária.

Desde 2015, a Anvisa já regulamentou a importação desses produtos, tendo sido realizados quase 13 mil pedidos por mais de 1,2 mil médicos, desde então, conforme dados do próprio órgão, o que comprova a existência de uma demanda real sobre prescrição por esses produtos.

Em janeiro de 2017, foi registrado o primeiro medicamento à base de Cannabis sativa, no Brasil. Mesmo assim, há dezenas de processos em andamento para que o judiciário autorize o plantio individual por famílias e pacientes, que alegam ausência de condições para importar esses produtos.

Isso sem considerar os gastos do SUS com a aquisição de produtos à base cannabis, que não passaram pela avaliação da Anvisa. No Canadá, nos Estados Unidos e em Portugal, por exemplo, produtos à base de cannabis podem ser registrados como medicamento, com a devida avaliação de qualidade, segurança e eficácia das autoridades sanitárias.

Ao manipular para impedir que a planta seja cultivada no Brasil para fins exclusivos de pesquisa e de saúde, o governo está tolhendo o desenvolvimento de pesquisas científicas a respeito do tema, deixando o país a reboque das descobertas internacionais. Também impede a disponibilidade do insumo farmacêutico, para que dele sejam elaborados medicamentos à base dessa planta.

Mais de 30 países já possuem normas que regulamentam, tanto do ponto de vista da qualidade e da segurança, a produção de insumos, produtos e medicamentos derivados da cannabis em seus territórios, como revela o voto do diretor da Anvisa. Cabe mencionar, que a proposta da Anvisa, engavetada pelo diretor bolsonarista, prevê um rígido sistema de controle para que a planta seja cultivada no Brasil.

Ao se manter refém de uma visão obscurantista sobre o tema, o governo Bolsonaro impede o Brasil de progredir, junto com diversos países do mundo, no desenvolvimento de critérios para que o insumo da cannabis esteja disponível para as pessoas que precisam de tratamento. Também coloca mais um freio no desenvolvimento científico nacional deixando um dos maiores mercados farmacêuticos mundiais, que é o brasileiro, ao dispor da indústria farmacêutica internacional.

Conforme preconiza a própria Constituição de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação. Por isso, avançar na regulamentação do registro e do monitoramento de medicamentos produzidos à base de cannabis e nos requisitos técnicos e administrativos para o cultivo da planta, única e exclusivamente para fins medicinais e científicos, é uma questão de cidadania, garantindo que pacientes com doenças debilitantes ou que ameaçam a vida tenham acesso a um tratamento eficaz e seguro.

Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde.
Alexandre Padilha, deputado federal (PT-SP) e ex-ministro da Saúde.
Humberto Costa, senador (PT-PE) e ex-ministro da Saúde.