
O homem que aparece humilhando guarda municipal de Santos em vídeo que viralizou é, de fato, desembargador.
O DCM falou com ele na manhã deste domingo.
— O senhor se arrepende do que aconteceu, do que o senhor fez? —perguntei.
— Não, de maneira alguma. Não acordei de manhã e tenho essa mentalidade. Eu penso isso por quê? Porque eu estudei 36 anos de Direito. Eu sei a diferença entre o decreto e uma lei — respondeu o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira.
Outros trechos da entrevista são publicados logo abaixo. Mas antes, reconte-se a história que chamou a atenção pela agressividade de uma autoridade que, por estar no topo do serviço público, deveria ser a primeira a dar o exemplo.
No vídeo, Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira aparece digitando no celular enquanto um guarda municipal está com papéis na mão, ao que parece os autos de uma multa que está sendo lavrada.
O desembargador está em local público sem máscara, o que contraria decreto municipal em Santos. Na cidade, quem não usa esse equipamento de proteção individual e coletiva está sujeito à multa de 100 reais.
Enquanto digita, o desembargador comenta:
— Estou chamando o oficial de plantão, não é? É para isso que nós temos polícia.
— Exatamente — responde o guarda municipal.
— O senhor não é polícia.
— Eu sou guarda municipal.
— Nã, nã, nã, não tem autoridade nenhuma.
— Está bom, eu não tenho autoridade nenhuma. Mas eu tenho autoridade (inaudível) sobre o que é esse decreto.
— Está aqui… Del Bel — diz o desembargador, olhando para o celular. Em seguida, sem máscara, se aproxima do guarda e tenta forçá-lo a falar com o secretário de Segurança Pública de Santos, Sérgio Del Bel, responsável pela Guarda Municipal.
O guarda dá a resposta correta:
— Se ele quiser, ele liga no meu celular. Se ele tem alguma coisa para falar para mim, ele liga para mim.
O desembargador aparentemente percebe que outro guarda municipal grava as cenas em vídeo e se dirige a ele, fazendo sinal de positivo, com um sorriso forçado. E volta ao celular.
Ele cumprimenta Del Bel e diz quem está falando: “Desembargador Eduardo Siqueira”.
O guarda municipal pensa que o desembargador fala com ele e repete:
— Eduardo Siqueira, qual o número do seu CPF?
O desembargador ignora o guarda e continua a falar no celular:
— Tudo bem. E o senhor? Tudo calmo? Eu estou aqui com um analfabeto, PM seu aqui, um rapaz. Eu falou, eu falei: eu vou ligar para ele, porque eu estou andando sem máscara, só que estou eu na faixa da praia. Ele está aqui fazendo uma multa.
Em seguida, diz o que as próprias imagens desmentem, como se o guarda municipal tivesse afrontado a autoridade do seu chefe, o secretário Del Bel.
— O Del Bel é que fale comigo. Eu não falo com ele —diz o desembargador, distorcendo o que disse o guarda municipal minutos antes.
O guarda contesta, corretamente, pois o sentido da frase era outro. Quando o desembargador colocou o telefone na orelha dele, disse que, se o secretário quisesse falar, ele mesmo ligaria.
É um princípio que atende o protocolo de disciplina e hierarquia. Um secretário dificilmente se dirigiria diretamente ao guarda, ainda mais provocado por uma autoridade que estava se valendo de sua influência para evitar que a multa fosse lavrada.
O desembargador, dedo em riste, se aproxima do guarda e levanta a voz:
— Agora o senhor vai manter, cidadão. O senhor falou. (inaudível). O senhor não é autoridade. Vou passar o telefone — diz, tentando, mais uma vez, forçar o guarda municipal falar com o seu chefe.
O guarda, mais uma vez demonstrando que conhece as regras de disciplina e hierarquia, afasta o braço do desembargador.
— Eu não vou falar com ele — responde.
— É o Del Bel que está falando.
— Eu não vou falar com ele — repete.
Esse vídeo, postado por A Tribuna, o maior jornal de Santos, termina aí.
Mas há outro vídeo, que também circula pela internet, que mostra o desdobramento.
Depois de dizer “muitas vezes a gente só aprende quando perde”, ele se nega a assinar o auto de infração, e avisa que vai rasgar.
O guarda avisa, também corretamente:
— Se o senhor jogar em via pública, vai ser autuado por jogar em via pública.
O desembargador dá de ombros:
— Ah, tá, tá, tá.
Ele nem espera o guarda entregar a cópia da multa, pega de sua mão, pica e joga na areia da praia.
O guarda se abaixa, e recolhe a sujeira deixada pelo desembargador.
A imagem ainda o mostra olhando para o desembargador caminhando de tênis, meia, com bermuda azul e camiseta branca. Não diz uma palavra até que duas senhoras, aparentemente solidárias, se aproximam e ele diz:
— Desembargador…
Ao ser localizado por telefone na manhã deste domingo, Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira comentou o episódio.
Primeiramente, disse que não usa máscara por entender que não é obrigado, já que não há lei com disposição nesse sentido.
— É um decreto.
Em seguida explica que a norma, para ter validade, teria que ser aprovada pela Câmara Municipal, o caso de alcance municipal, ou pela Assembleia Legislativa, no caso de alcance estadual.
Perguntei a ele se existe lei que obrigue o cidadão a passar pelo detector de metal para entrar no Tribunal de Justiça de São Paulo.
É uma norma infralegal, porém legítima, dado que procura proteger os servidores do Judiciário, entre os quais juízes e desembargadores.
Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira não responde sobre o Tribunal de Justiça, mas diz que, no caso do detector de metal nos bancos, há uma lei federal.
— O decreto não. O decreto é unilateral, é unipessoal do governador ou do prefeito. Só que não obriga ninguém a nada. Isso qualquer aluno do segundo ano de Direito sabe — afirmou.
Pergunto: Um decreto tem força de norma, se não for ilegal ou constitucional?
— Não tem força de norma nenhuma — diz.
Quando insisto, ele responde:
— Se o senhor está me ensinando, eu fico aprendendo aqui. Em seguida, diz, fazendo uma comparação descabida:
— Se amanhã o prefeito fizer um decreto obrigando todo mundo a andar plantando bananeira, o senhor não é obrigado a obedecer.
Mas, segundo o raciocínio dele, se houver uma lei obrigando a plantar bananeira, aí todos teriam que plantar bananeira.
Todos, vírgula, uma lei como essa, sem objetivo algum que não o de ridicularizar os cidadãos, seria facilmente derrubada. Mas nos fóruns adequados.
Não é o caso do uso de máscara, já que, segundo autoridades sanitárias do mundo todo, é um meio eficaz de minimizar o risco de transmissão do vírus.
— O senhor chamar o guarda municipal de analfabeto não é muito agressivo? — pergunto.
— Não acho — respondeu. Ele veio de maneira despreparada para fazer o incidente. Porque você veja: vários guardas municipais acabaram ficando meus amigos.
Depois, disse que é de Santos e tem 36 anos de carreira como juiz. “Tenho casos grandes, sérios, contra os planos de saúde, a investigação de paternidade da filha do Pelé. Vários casos em Santos quando fui juiz aqui tiveram repercussão. Por isso, vários desses guardinhas municipais me conhecem. Falam comigo, tal.”
Pelo que disse, ele não gostou da forma de abordagem do guarda que lavrou a multa.
— O sujeito desceu do carro, era um sujeito assim grandalhão, um negro, extremamente arrogante. Queria confusão.
Chama a atenção que, ao descrever o guarda municipal, tenha feito referência à cor de pele.
Em seguida, ele disse que policial militar tem poder de polícia. Se você desacatar um policial militar, pode ir preso.
— Um guardinha municipal não tem poder de polícia. Ele não está ali para prender ninguém. Ele está ali para falar ‘não faz xixi’ (inaudível), não joga pedra ali. Ele não pode dar voz de prisão. E eles ameaçam constantemente dar voz de prisão.
O desembargador não deveria desconhecer que, desde 2014, vigora a lei Lei 13.022, que deu poder de polícia às Guardas Municipais, ao regulamentar o artigo 144 da Constituição, que admite a criação da força de segurança no âmbito do município.
A sanção da lei foi uma luta antiga, que começou quando Romeu Tuma era senador e Nelo Rodolfo, deputado federal, ambos trabalharam por sua aprovação, que só viria a ocorrer em 2014.
— O senhor que está dizendo. Me dá o número da lei e eu vou pesquisar.
É 13.022/2014.
— O senhor viu eu puxar a arma para alguém?
— Não.
— Pois eu estava armado — contou.
Mesmo que não houvesse lei algum conferindo autoridade às guardas municipais, Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira poderia levar em consideração o interesse coletivo por trás da obrigatoriedade de uso de máscara.
Sua opinião sobre isso é controversa. Ele disse que viu o estudo de um “renomado professor da Alemanha”, segundo o qual o uso de álcool em gel e de máscara prejudica a defesa natural do organismo.
— De tanto a gente ficar passando gel na mão, máscara, não toma banho, não sei o que, nós estamos matando a nossa autoridade natural. Eu sou do interior e lá, quando a gente é pequeno, mexe em terra e pega imunidade. Nós estamos tirando nossa imunidade. Máscara, gel três vez por dia, se vier uma outra frente, nós estamos com baixa imunidade. E o estrago vai ser muito maior. Como eu acho que a perda de imunidade é mais perigosa, eu sigo o meu caminho.
Ele contou que estava com a máscara no bolso quando foi abordado pelo guarda municipal, mas não quis colocar. Antes disso, segundo seu relato, tinha parado para conversar com um casal e, questionado, afirmou que não usa máscara por considerar que só faz mal à saúde.
— Agora, eles (os guardas) não conseguem entender, o que é que eu vou fazer? Eles não falam ‘por favor’, ‘eu gostaria’, não. A cidade inteira sabe disso.
Pergunto:
— O que o senhor fez, se fosse um cidadão comum, não poderia ser enquadrado como desacato?
— Nunca, eles não têm autoridade. Se não têm autoridade, não podem ser desacatados. O que eles estão fazendo é crime. Eles estão usurpando autoridade.
Por fim, ele disse que, se entrar em um supermercado ou banco, usa máscara, mas “por faculdade minha”, “de educação minha”, “em atenção aos demais”.
“Agora, se eu estiver num jardim ou na praia, não uso, e muita gente faz a mesma coisa. É só o guardinha passar, e eles abaixam a máscara, deixam no queixo”, comentou.
O Brasil é hoje o segundo país com mais mortos pelo coronavírus, com quase 80 mil vítimas. Tem uma população que corresponde a 2,5% do total de habitantes do planeta e 13% do total de mortos por covid-19.
O comportamento de pessoas como o desembargador — que, num certo sentido, é muito parecido com o que diz Jair Bolsonaro — talvez explique por que apresentamos hoje esses números tão vergonhosos.
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Abaixo, dois vídeos sobre o episódio ontem em Santos: