Exclusivo: engenheira depõe sobre o crime ambiental do amigo de Teori e a Paraty House. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 3 de abril de 2017 às 8:15
Filgueiras com convidado em sua casa na Ilha das Almas, Paraty
Filgueiras com convidado em sua casa na Ilha das Almas, Paraty

 

A primeira pergunta que vem à cabeça quando se chega a Paraty é: como esta cidade, com suas casas antigas e vielas com pedra, pôde se manter intacta ao longo do tempo?

“A decadência, a pobreza”, responde o historiador Diuner Mello.

Segundo ele, Paraty era uma cidade importante do Brasil até que Dom Pedro II decidiu construir a estrada de ferro que ligou São Paulo ao Rio de Janeiro e a tirou da rota do café.

Era pelo porto de Paraty que os produtores do Vale do Paraíba escoavam a produção até a capital do país.

Antes, ela tinha sido escala para o transporte de ouro extraído das Minas Geais, numa navegação costeira protegida por canhões e longe das grandes embarcações de piratas.

A falta de investimento obrigou os nativos a conservar o que tinham: casas antigas e ruas estreitas.

Não havia quem investisse em novas avenidas e praças. Paraty, pelo menos no seu centro histórico, se conservou como era no século XIX.

Quando Paraty foi redescoberta — primeiro timidamente, na década de 50 e, mais tarde, na década de 70, com a abertura da rodovia Rio-Santos  –, os milionários se interessaram por sua originalidade.

Transformaram a cidade numa espécie de mercado de arte: um sobrado, como o que Roberto Irineu Marinho comprou há alguns anos, vale tanto quando um quadro de pintor de primeira linha.

Seus prédios são como extrato de conta bancária: reserva de valor.

Os antigos moradores se retiraram para os lugares mais afastados e hoje, em algumas comunidades, quadrilhas cariocas se instalaram e disputam o comércio de drogas vendidas aos turistas, o que fez de Paraty a cidade mais violenta do Estado do Rio de Janeiro.

Nas ilhas da região, a natureza também estava intacta, muitas delas ocupadas por caseiros e outras por pescadores, até que os milionários foram às compras.

O boom das construções ilegais foi nos anos 90. Os milionários derrubaram a Mata Atlântica e levantaram mansões, na região que é definido como Área de Proteção Ambiental Cairuçu.

O empresário Carlos Alberto Fernandes Filgueiras, dono do Hotel Emililiano e amigo do ministro Teori Zavascki, com quem morreu em acidente aéreo, fez várias construções.

O propósito declarado dele era fazer um resort. Levantou uma casa na Ilha das Almas e fez uma praia artificial.

Já os proprietários da mansão atribuída à família Marinho fecharam uma praia já existente, erigiram um triplex, instalaram uma piscina de pedras na areia e construíram um heliponto.

Tudo ao arrepio da lei.

Contra os milionários predadores, se colocaram funcionários públicos.

Em 2007, um delegado da Polícia Federal recebeu uma carta anônima com denúncia de dano ambiental nas propriedades adquiridas pelo empresário Carlos Alberto Fernandes Filgueiras e abriu inquérito.

Dois anos depois, um procurador abriu investigação para apurar a denúncia de um morador de que a família Marinho estava destruindo a natureza na Praia de Santa Rita e se apropriando da praia.

Nos dois casos, entrou em ação a analista ambiental Graziela Moraes Barros, convocada para a missão de verificar as denúncias.

Blindagem para ocultar a posse: a Paraty House
Blindagem para ocultar a posse: a Paraty House

Em um relatório de vistoria, na propriedade atribuída à família Marinho, ela transcreveu um diálogo com um segurança armado que sintetiza como os milionários administram o bem público:

A senhora está querendo arrumar confusão? – pergunta o segurança, quando Graziela e outra analistas desembarcam e pisam na praia.

– Eu? Por qual motivo? – diz uma das analistas.

— Aqui é propriedade particular! – diz o segurança (a exclamação está no original).

– Onde? Aqui na praia? – responde a analista.

– Aqui não é praia! Eles compraram! – afirma o segurança.

– A areia é deles? – questiona a analista.

– Você por acaso sabe onde é o limite da propriedade? – rebate o segurança.

– E os brinquedos sobre a areia da praia são deles também? – continua a analista, no debate tenso com o segurança, acompanhado, de longe, por um casal, que, na interpretação das analistas, era o casal proprietário do triplex.

– Sim, já falei. É tudo particular! – diz o segurança. A senhora quer confusão? Vou ligar agora mesmo para a Capitania dos Portos e verificar a regularidade de seu barco! Estou ligando!

– Ok! – concorda a analista. Podemos nadar naquela piscina que está sobre a areia? – prossegue a analista, com o objetivo de obter resposta que demonstrasse a posse sobre área pública.

– Não, é propriedade particular! Eu posso entrar na sua casa?

Finalizando o diálogo, uma das analistas, segundo o relato encaminhado à Justiça, argumenta:

– Mas nós não moramos na beira da praia.

O relatório integra a Ação Civil Pública que já dura sete anos e pede a demolição das construções.

Em um processo parecido, contra Filgueiras, dois anos mais antigo, Graziela prestou depoimento como testemunha de acusação. O vídeo de seu depoimento acompanha esta reportagem.

Graziela diz o que viu e lamenta que, com as construções ilegais levantadas por Filgueiras, será impossível regenerar a natureza.

Graziela já sofreu atentado – um carro dela foi incendiado – e se transferiu. Continua como analista do Instituto Chico Mendes, órgão do Ministério do Meio Ambiente, mas já não atua mais na área onde se encontram as propriedade de Filgueiras e aquela atribuída à família Marinho.

Para levantar informações sobre a Ilha das Almas, conta que esteve com a advogada Corina Tarcila de Oliveira Rocha, que tem escritório em Paraty e representou o dono do Hotel Emiliano durante algum tempo.

A doutora Corina foi uma das advogadas que evitaram que Filgueiras comparecesse à Justiça Federal em Angra dos Reis.

Suprema coincidência – ou não? –, Corina é também advogada da empresa que é oficialmente proprietária da Paraty House, Agropecuária Veine.

Essa empresa, a Agropecuária Veine, é controlada pela Vaincre, offshore relacionada no escândalo internacional de lavagem e ocultação de dinheiro, o Panamá Papers.

Quem é o dono?

Pelo menos na papelada e nos depoimentos que fazem parte do processo, ninguém sabe, ninguém viu. Os nomes estão em algum arquivo no paraíso fiscal do Panamá ou gaveta de algum escritório no Brasil.

É assim que funcionam os paraísos fiscais: anonimato e segurança totais. Além de representar a Agropecuária Veine, a doutora Corina defende também os dois idosos apontados como laranjas no caso da Paraty House.

Com mais de 70 anos de idade, os idosos já foram criminalmente responsabilizados pelo crime ambiental. Resta a ação civil, que propõe a demolição da mansão, o mesmo que se pleiteia no processo de Filgueiras.

Num ponto, Filgueiras e a Paraty House tem tudo a ver: a advogada é a mesma.

A doutora Corina de um lado. A analista ambiental Graziela de outro. Quem ganha?

Reservadamente, funcionários públicos como Graziela, que fizeram o seu trabalho de tentar proteger a natureza dos milionários predadores, dizem que têm consciência de que talvez não vivam para ver demolição alguma.

“No Brasil, os ricos podem quase tudo”, foi a sentença da reportagem publicada pelo site Bloomberg, quando pela primeira vez um órgão de imprensa – este publicado em língua inglesa – denunciou os abusos em Paraty.

Exceto sites independentes como o DCM, a imprensa que escreve em língua portuguesa ignora o assunto.

“Os ricos podem quase tudo”.