EXCLUSIVO – MPF investiga ONG de Damares por novos sequestros de crianças indígenas em Mato Grosso

Atualizado em 23 de janeiro de 2023 às 22:08

A Organização Não Governamental Atini, fundada pela ex-ministra e senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF) e por missionários pentecostais norte-americanos, está no centro de uma investigação encampada pelo Ministério Público Federal sobre a adoção clandestina de crianças dentro da Terra Indígena Pimentel Barbosa, em áreas dos municípios de Água Boa e Canarana, a 730 quilômetros de Cuiabá.

A região abriga o povo xavante e há anos é palco de denúncias de sequestros de crianças por parte de igrejas e missões religiosas evangelizadoras de povos indígenas, do Brasil e dos Estados Unidos.

É o povo xavante o ocupante das terras de grande parte do leste de Mato Grosso  (Arte/DCM)

No último dia 18, o Ministério Público Federal em Mato Grosso, por meio do procurador da República Guilherme Fernandes Ferreira Tavares, instaurou inquérito civil para apurar denúncias de sequestro e adoção clandestina de crianças indígenas que vivem em territórios protegidos em Mato Grosso. A investigação foi aberta tendo como base as denúncias reunidas no Procedimento Preparatório nº 1.20.004.000079/2022-12, do MPF-MT.

De acordo com o órgão, os ataques vêm ocorrendo nas aldeias Pimentel Barbosa e Etenhiritipá, ambas localizadas em Água Boa. Segundo as denúncias – a que o DCM teve acesso -,  missionários identificados com a ONG Atini e com a associação norte-americana Jovens Com Uma Missão (Jocum, com a qual Damares se juntou para criar a Atini) levaram crianças da região para serem “atendidas” por supostos maus tratos que sofreriam dentro das aldeias, por motivos alegados como “retardo mental”, “fruto de uma relação sexual fora do casamento” e “falta de condições de criar o bebê”.

A partir daí, segundo a denúncia, as crianças indígenas jamais teriam sido devolvidas aos pais ou às tribos de origem, sendo entregues em adoção a casais determinados pelos missionários das ONGs evangelizadoras.

Se as acusações correspondem aos fatos, só a investigação do MPF-MT poderá dizer. Uma coisa, porém, é certa: a ONG de Damares coleciona denúncias como essa.

Em outubro de 2014, por exemplo, o MPF em Volta Redonda (RJ) moveu ação civil pública para garantir a ida de uma criança indígena de três anos à Terra Indígena Andirá Marau, localizada no Amazonas, do povo sateré-mawé, junto de sua mãe biológica e de sua aldeia. A menina fora entregue por missionários e líderes da ONG Atini e da associação Jocum a um casal que vivia em Volta Redonda, após ter sido separada de sua mãe biológica.

Conforme conta a Procuradoria, as instituições Jocum e Atini subtraíram a adolescente sataré-mawé da aldeia indígena onde vivia, invocando motivos humanitários, a pretexto de protegê-la. Após a subtração, a adolescente indígena foi submetida a uma peregrinação pelo país e deu à luz uma menina, de quem foi separada no quarto dia após o parto.

Para o MPF, a história da mãe indígena e de sua filha foi distorcida até parecer uma doação comum de uma criança vulnerável, com mãe incapaz, por um casal de classe média de Volta Redonda. Na realidade, porém, explica o MPF:

Se trata de mais um exemplo da atuação sistemática desses grupos missionários contra os povos indígenas e seus modos de vida, com o fim de fazer valer unilateralmente a concepção daqueles sobre a cultura indígena. Mais do que uma discussão em torno dos direitos da mãe de ter consigo a filha, o caso representa  a violação de direitos do povo sateré-mawé, causada pelo casal e pelas entidades Jocum e Atini, sob a omissão da Funai.

A Jocum é uma missão internacional, fundada em 1960, com o nome Youth with a mission (YWAM), que iniciou seus trabalhos no Brasil em 1975. Já a Atini é uma organização não-governamental fundada em 2006 por Damares e missionários da Jocum que atuavam junto aos indígenas, com o alegado objetivo de erradicar o infanticídio nas comunidades.

“Sob pretexto de uma atuação supostamente humanitária, os envolvidos promoveram uma desestruturação étnica de determinados povos e a violação da dignidade humana de indígenas, retirando-os de suas terras e do convívio com o seu grupo”, afirmam os procuradores da República Julio José Araujo Junior e Marcela Harumi Takahashi Pereira Biagioli.

Voltando ainda mais no tempo: em 2006, as meninas indígenas de 9 anos Muwaji e Inikiru foram retiradas de sua tribo na Amazônia por um casal de missionários da Jocum, Edson e Márcia Suzuki. Desde então, passaram a morar com famílias de missionários e perderam o contato com o seu povo.

Inikiru, hoje com 24 anos, mora com uma família que chefia a base da Jocum na Chapada dos Guimarães (MT) e se tornou, ela própria, missionária.

Em janeiro de 2020, Inikiru fez uma vaquinha online para financiar uma viagem missionária à Turquia. No texto em que pede doações, Inikiru diz vir “de um povo isolado, onde eles cometem suicídios por falta de esperança”. “Falta de esperança, para mim, é falta do Evangelho — eu creio que o meu povo vai ser resgatado pela palavra da verdade do Evangelho”, disse a indígena, em 2020, em entrevista à BBC.

Inikiru contou também que, “em busca de levar essa palavra ao meu povo”, frequentou uma Escola de Treinamento e Discipulado (Eted), espécie de curso de formação para missionários.

Neste mesmo ano de 2020, o governo federal, em missão liderada pelo Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos, enviou um time de “especialistas” para fazer contato com uma tribo isolada na Amazônia. Enviou junto a indígena Inikiru, criada na seita da Jocum, além de “técnicos” da Atini.

A empresa de notícias britânica BBC, que estava acompanhando o caso, foi atrás de saber como que uma ministra poderia enviar “técnicos” para uma missão dessa importância que coincidentemente eram membros de uma ONG criada pela própria ministra. Assim foram informados e assim informaram seus leitores, os britânicos:

A Atini diz que Damares deixou a organização em 2015.

Era simplesmente mentira. No dia 6 de junho de 2018, três após seu alegado desligamento da Atini, Damares Alves foi descrita como heróina da causa indígena e conselheira da Atini pelo insuspeito Pleno News, página bolsonarista da internet que tem entre seus colunistas os parlamentares Bia Kicis (PL-DF), Sargento Fahur (PSD-PR) e Carlos Jordy (PL-RJ).

Na ocasião, identificando-se como conselheira da Atini, jactava-se de ter sido responsável por salvar uma criança do infanticídio, ela seria enterrada viva pela bisavó não fosse a diligente intervenção da Atini e de Damares (à época, assessora parlamentar na Câmara), que entregaram a menina para que um outro casal pudesse criá-la. A localidade da ocorrência? Água Boa e Canarana, leste de Mato Grosso, terra xavante, essa sobre a qual o MPF-MT agora põe sua lupa, em busca de sequestros e adoções clandestinas.

Depois, quando já era ministra, Damares levou a menina para os braços da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, para que as duas pudessem celebrar juntas a vida.

Ao abordar a criança de Água Boa que teria sido salva pela ONG de Damares, Michelle diz: “A nossa ministra está cuidando de todos os indígenas” (crédito: reprodução)

Tudo isso para que, depois, – aí sem que a ministra tenha chamado a atenção de holofotes e fiéis – a Justiça de Mato Grosso determinasse a devolução da criança para a guarda de seu próprio pai.


Uma história sem fim nem começo

A história de Damares com os indígenas parece não ter nem começo. Muito antes do episódio de Água Boa, precisamente em 17 de abril de 2009, lideranças das nações Yawalapiti, de Mato Grosso, e Kayapó, do Pará, denunciaram à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados a adoção ilegal de crianças indígenas por duas organizações evangélicas: a brasileira Atini Voz Pela Vida e a norte-americana Jovens Com Um Ideal (Jocum).

Segundo os caciques, as duas entidades sequestram crianças com a desculpa de que estão evitando o infanticídio. No documento, endereçado aos deputados Luiz Couto (PT-PB) e Janete Pietá (PT-SP), representantes das duas tribos acusavam a Atini e a Jocum de difamarem os índios brasileiros e suas tradições utilizando a internet e os meios de comunicação para anunciar a prática de infanticídio. Tudo isso com ampla divulgação da imprensa na época.

Dez anos depois, em 2019, a já ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, foi acusada por índios Kamayurá, da região do Xingú em Mato Grosso, de sequestrar uma criança da aldeia em 2005. A garota, que hoje tem mais de 20 anos, foi apresentada pela ex-ministra como sendo sua filha adotiva.

A menina foi levada por Damares para fazer um tratamento dentário fora da aldeia, juntamente com uma amiga da ministra, Márcia Suzuki (a mesma do casal missionário da Jocum que levará embora duas meninas de tribos da Amazônia). A indígena nunca mais voltou. A ministra negou o sequestro.

Mais importante do que detectar o começo, é preciso colocar um fim nessa história. Que o Ministério Público Federal em Mato Grosso tenha sucesso em seu trabalho.