Extrema-direita brasileira abraça lobby de armas dos EUA e vendas explodem

Atualizado em 11 de outubro de 2022 às 21:05
Congresso em 9 de julho em Brasília defende legalização de armas

Publicado originalmente na Vice

Samurai Caçador colocou o rifle no ombro e mirou enquanto a picape balançava pelos campos. Bang! O porco selvagem e seus cinco leitões correram assustados na escuridão da noite, iluminados por uma lanterna de longo alcance. Bang!  “Venha caçar com o Samurai!” gritou ele, o carismático e falante influencer pró-armas mais famoso do Brasil.

Um enorme javali – uma espécie invasora que arranca o solo e ataca plantações – jazia morto no chão, ainda com o sangue quente. Samurai tinha soltado os leitões. Eles morreriam em breve sem a mãe, disse ele.

Samurai Caçador não é seu nome verdadeiro, ele se chama Mardqueu Silvio França Filho. Mas seis anos atrás, quando França estava procurando aumentar sua influência na Internet, ele escolheu Samurai – um militar do Japão medieval – por ser descendente de japoneses. Ele diz isso apontando para os olhos. Para completar a alcunha, escolheu Caçador.

França concorreu a deputado estadual no estado de São Paulo, um de uma lista de candidatos pró-armas que não apenas amam armas fabricadas nos EUA, mas também abraçam a retórica e a cartilha da NRA – a associação americana de armas. Sob o governo Bolsonaro, eles passaram de um grupo de entusiastas pró-armas para uma força política. Apesar dos 55 mil votos, ele não foi eleito por SP.

Ex-oficial do Exército, Bolsonaro transformou o direito às armas em uma peça central de sua tentativa de reeleição, mas destapou um movimento provavelmente mais duradouro. Ativistas transformaram o debate sobre armas em um debate político claramente inspirado pela NRA. Entre seus objetivos está aprovar o equivalente à Segunda Emenda, garantindo o direito de portar armas.

“O que alguns países levam 50 anos para fazer, nós fizemos em cinco”, disse Samurai. “Eu vejo o movimento pró-armas como um novo padrão de liberdade.”

A mudança radical sob Bolsonaro – ele expandiu o acesso a armas a um nível sem precedentes – é surpreendente. Desde que assumiu o cargo em 2019, o número de armas em mãos de civis quase triplicou, para 2 milhões, enquanto o número de proprietários de armas registrados triplicou para 1,5 milhão, segundo o Instituto Sou da Paz. Num dos países mais violentos da América Latina, os proprietários de armas agora superam a polícia e os militares somados.

“A caixa de Pandora foi aberta e não vejo chance de retorno”, diz Robert Muggah,do Instituto Igarapé, um think tank focado em segurança e justiça. “Bolsonaro, sua família e seus apoiadores turbinaram o movimento pró-armas no Brasil.”

O número de armas nas mãos de apoiadores de Bolsonaro alimentou preocupações de revolta civil se Bolsonaro se recusar a aceitar o resultado eleitoral. Bolsonaro é fã do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, e, como Trump, questiona a confiabilidade do sistema eleitoral sem provas e queria que as Forças Armadas “auditassem” a apuração.

Em 5 de setembro, o ministro do Tribunal Superior Eleitoral, Edson Fachin, tomou a medida de suspender temporariamente as portarias que facilitam a compra de armas, alegando o risco de “violência política” às vésperas das eleições. Esse risco, escreveu Fachin, “torna a necessidade de restringir o acesso a armas e munições extremamente e excepcionalmente importantes”.  Samurai minimizou tais preocupações. “Eles disseram que teríamos uma guerra civil. Era mentira”, disse. “Qual guerra?

Samurai Caçador não se elegeu deputado estadual em SP

A NRA mira o Brasil

O movimento pró-armas do Brasil era praticamente nulo. Até a intervenção da associação norte-americana de armas. Em 2003, o Congresso brasileiro estava a poucos meses de aprovar um projeto de lei de desarmamento que endurecia as restrições para posse e porte de armas. Alarmados, grupos pró-armas no Brasil convidaram o lobista da NRA, Charles Cunningham, para traçar estratégias com eles. Cunningham veio ao Brasil e falou sobre a necessidade de enfatizar a liberdade e os direitos, mais do que apenas a posse de armas.

A estratégia foi posta à prova dois anos depois, em 2005, quando foi votada uma lei para proibir a venda de armas a civis. A proposta teve o apoio do governo brasileiro, das Nações Unidas, da Igreja Católica e, segundo pesquisas iniciais, da grande maioria dos brasileiros.

Mas as opiniões mudaram rapidamente quando o campo pró-armas publicou anúncios que enfatizavam a posse de armas como um símbolo de liberdade. Um anúncio de televisão apresentou Nelson Mandela e conectou sua luta pela liberdade à ideia de que as pessoas deveriam ter a liberdade de possuir armas. Outro comercial de TV se referia ao “direito” de possuir uma arma, embora tal direito não exista no Brasil.

“Vemos o Brasil como a abertura para um movimento global de controle de armas. Se os defensores do controle de armas tiverem sucesso no Brasil, os Estados Unidos serão os próximos”, disse o porta-voz da NRA, Andrew Arulanandam, ao grupo de jornalismo investigativo CorpWatch uma semana antes da votação em 2005.

A medida foi rejeitada por mais de 60% dos eleitores. Menos de 20 anos depois, o Brasil tem um dos maiores fabricantes de armas de fogo do mundo, a Taurus, e se tornou um lucrativo mercado emergente para empresas americanas de armas. “É um mercado inexplorado”, diz Luis Horta, diretor de vendas internacionais para a América Latina da Springfield Armory, uma fabricante de armas que vende revólveres e rifles dos EUA. “Não há outro país que tenha o potencial que o Brasil terá em 10 anos.”

Um movimento político de armas inspirado nos EUA

Em 9 de julho deste ano, cerca de 3.000 entusiastas de armas estiveram em um evento pró-armas em Brasília. A manifestação foi organizada pelo ProArmas, grupo lobista inspirado na NRA, para exigir um maior afrouxamento das restrições às armas. Eles o classificaram como um “comício pela liberdade”.

Desde sua fundação em 2019, o ProArmas, tornou-se uma força influente no Congresso e mobilizou dezenas de milhares de proprietários passivos de armas em um bloco eleitoral entusiasmado. Esses eleitores foram de várias partes do Brasil para a capital. A maioria era de homens brancos e grande parte usava camisetas com a frase de Bolsonaro “Um povo armado nunca será escravizado” com uma foto de um fuzil semiautomático.

Caçador chegou com camisa de botão camuflada, chapéu preto com seu nome estampado e o logotipo da marca tatuado no antebraço. Ele cumprimentou com entusiasmo os lobistas pró-armas quando eles desceram dos ônibus. Alguns o reconheceram do Instagram, onde ele publica conteúdo relacionado a armas para seus 85.000 seguidores. Ele posou para selfies com fãs, com os dedos em forma de arma, símbolo da campanha de Bolsonaro.

Bolsonaro defende uma abordagem vigilante – “atire primeiro e pergunte depois” para lidar com a criminalidade no Brasil e ampliou o acesso a armas com base nesse ethos. Com decretos, ele reduziu a idade para comprar uma arma, reduziu a fiscalização sobre a posse de armas, suspendeu a proibição da venda de rifles de alta potência como AR15s para civis e aumentou o número de armas que cada civil pode ter – 12 a 30 para caçadores e 16 a 60 para atiradores esportivos. O número de clubes de tiro durante seu mandato subiu de 215 para mais de 2.000.

Havia rumores de que Bolsonaro poderia aparecer no evento do ProArmas. Em vez disso, ele mandou Eduardo, seu filho do meio e um dos maiores defensores do lobby pró-armas no Brasil. O deputado estabeleceu fortes laços com a NRA e a família Trump. Admiradores o cercaram em busca de selfies enquanto guarda-costas o cercavam.

Diante de uma multidão reverente, Eduardo se gabou do sucesso do pai. A taxa de homicídios caiu cerca de 30% durante a presidência de Bolsonaro – algo que os Bolsonaros alegam ser resultado de mais armas nas mãos de civis. “No início, só Jair Bolsonaro criticou o controle de armas. Agora, temos uma multidão enorme aqui nos apoiando”, gritou Eduardo em um megafone em cima de um carro alegórico. “Sim para as armas, porque preferimos que os bandidos morram do que ter que se preocupar que nossas esposas possam ser estupradas.”

Ele terminou seu discurso criticando Lula e se juntou à multidão quando eles explodiram em cantos que pareciam uma torcida organizada: “Prendam Lula!” Depois do evento, Eduardo deu entrevista a sites internacionais: “Os Estados Unidos são uma referência quando se fala em democracia, quando se fala em liberdade e quando se fala em controle de armas”, disse. “Aqui no Brasil estamos construindo a nossa NRA, que é a ProArmas.”

O evento em si foi desprovido de armas. Os brasileiros são proibidos de carregá-las em público, a menos que estejam caçando ou indo para um estande de tiro. Também é necessário ter bons antecedentes e passar por avaliações psicológicas antes de comprar uma arma – o que pode levar meses.

O ProArmas também apoiou 89 candidatos a deputado estadual e federal em todo o país, incluindo Caçador e Marcos Pollon, o fundador do grupo – ele concorreu a deputado federal. Oito são mulheres. Todos apoiam Bolsonaro. Pollon foi eleito pelo PL-MS.

“Lutamos pela liberdade de nossos filhos e dos filhos de nossos filhos”, disse Pollon em churrasco após o evento. Um advogado do Mato Grosso do Sul, Pollon ecoou muitos dos principais pontos de lobby da NRA, incluindo que “a única maneira de parar um estuprador é com uma arma”.

Amigo íntimo da família Bolsonaro e pró-armas, Marcos Pollon (PL) foi o deputado federal mais votado em MS

Afrouxar as restrições às armas está entre os objetivos de longo prazo da ProArmas. O objetivo imediato do grupo, porém, é codificar em lei o acesso permitido por Bolsonaro fez por meio de decretos. Isso impediria Lula de revogar os decretos – o petista prometeu fazer isso se vencer a eleição. Apenas a ex-mulher de Bolsonaro, Ana Cristina Valle, também presente ao evento da Pró-Armas, cogitou a ideia de que Bolsonaro poderia perder.

Se isso acontecesse, a família “provavelmente sairia do Brasil”, disse Ana. Bolsonaro pode enfrentar acusações de “crimes contra a humanidade” por lidar com a pandemia de COVID-19, e o filho dele e de Ana, Renan, está sendo investigado por lavagem de dinheiro.

Alimentando a extrema-direita – e gangues

Em agosto, John Lott, presidente do Crime Prevention Research Center, cujo livro “More Guns, Less Crimes” se tornou um grito de guerra da NRA, viajou para a Shot Fair, uma das maiores convenções de armas da América Latina. Ele foi tratado como uma celebridade. No discurso de Lott, os membros da plateia perguntaram o que motiva “George Soros, Barack Obama e CNN” a apoiar o desarmamento.

“Pessoas de esquerda, como George Soros e outros, pensam que são muito mais inteligentes do que todo mundo”, respondeu Lott. “Eles não confiam em você para tomar decisões em várias áreas da vida. Uma delas é a posse de armas.

Lott acrescentou que “são as pessoas mais vulneráveis ​​da nossa sociedade que mais se beneficiam de ter armas para proteção”. Ainda assim, a maioria dos brasileiros não pode comprar uma arma – elas são muito mais caras do que nos EUA.

“Se você vê as pessoas que estão comprando armas no Brasil, são homens, brancos e ricos”, disse Bruno Langeani, pesquisador do Instituto Sou da Paz, em São Paulo. “Para a população pobre, o único lado da política armamentista são ferimentos e mortes por tiros”, diz Langeani.

Mesmo os legisladores alertam que mais armas podem levar a mais crimes. As gangues mais poderosas do país, o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, há muito traficam drogas e armas, contrabandeadas via Paraguai. A expansão do mercado de armas legais no Brasil oferece a eles uma oferta barata de armas e munições. Muitos proprietários de armas registradas foram acusados ​​de vender armas para grupos criminosos.

“Mais armas nas ruas significarão mais armas nas mãos de criminosos”, disse Pedro Correa Santos, chefe das investigações de assaltos a bancos em São Paulo, ao abrir um armário com 151 armas que a polícia havia apreendido durante assaltos a bancos em 2022. “Essas armas são armas de criminosos”, diz Correa. “Eu não sei por que alguém [iria] querer comprar uma arma como essa.”

Os apoiadores de Bolsonaro compraram mais armas conforme a eleição se aproximava. Jorge Sousa, participante da Shot Fair, em agosto, teve três armas durante a maior parte de sua vida. Só em 2021, ele comprou mais 26. Ele estava querendo comprar seu 27º – um AR-10 do fabricante americano Springfield. Enquanto a arma é vendida por cerca de R$ 6500, nos EUA, ela custa mais de R$ 27.500 no Brasil. “É uma paixão”, disse.

Samurai estava muito ocupado cumprimentando seus fãs para conferir as armas. “Nossa tarefa é manter esse mercado independentemente do presidente”, disse ele.