Política

Extrema direita quer carta branca para mentir, difundir preconceitos e incitar violência. Por Luis Felipe Miguel

Tela de celular com alerta de fake news. Foto: Pedro França

A defesa da “liberdade de expressão” virou bandeira da extrema direita.

Uns querem carta branca para espalhar mentiras. Outros, para difundir preconceitos e incitar violência.

Em campanha contra o PL 2630, que busca responsabilizar as big techs e refrear a disseminação de fake news, a deputada Bia Kicis, que é o cérebro jurídico do bolsonarismo (risos), discursou: “Mentir não é crime”.

Será? Ou, na verdade, em algumas circunstâncias mentir pode, sim, ser crime?

Quem conta uma lorota de pescador na mesa do bar pode ser sem noção e sem graça, mas realmente não comete crime.

Mas calúnia, injúria e difamação estão tipificadas no Código Penal. E a divulgação de informações falsas para prejudicar adversário político é crime eleitoral.

A legislação brasileira é atrasada – a noção de “crime eleitoral” não contempla o modelo de campanha permanente, que foi incrementado com as redes. E falha também ao não especificar responsabilidades próprias do jornalismo.

Afinal, a lorota de pescador, que é só um pecadilho na mesa do bar, é uma grave transgressão do bom uso da liberdade de expressão caso seja a manchete de um jornal.

Porque a liberdade de expressão é contextual. Ela protege o direito do jornalista de informar, não de inventar. Já o ficcionista pode criar livremente. O cientista pode produzir as teorias mais inovadoras, mas não falsificar seus dados. O professor tem liberdade de cátedra, mas ainda assim precisa ensinar a seus estudantes o conteúdo programático de suas disciplinas.

Na clássica defesa liberal da liberdade de expressão, John Stuart Mill explica que ela é, em primeiro lugar, um direito do público. Precisamos dela para termos acesso às diferentes visões do mundo e, assim, formar com mais autonomia nossa própria opinião.

Se é assim, a censura, isto é, a proibição da divulgação de determinadas informações ou ideias, é apenas uma das ameaças à liberdade da expressão. (E o PL 2630 combate a censura, obrigando as redes a justificar aos usuários quando retiram algum conteúdo e estabelecendo procedimentos obrigatórios de recurso das decisões das empresas.)

Outra ameaça é a difusão deliberada de mentiras, com o objetivo de poluir o debate e confundir o público. Com isso, o objetivo da liberdade de expressão, que é a formação autônoma das opiniões, é bloqueado.

Telegram, big tech que dificultou ao governo brasileiro o acesso a neonazistas

A fronteira entre o engano de boa fé, a negligência na confirmação dos fatos e a desinformação deliberada nem sempre é precisa, mas é evidente que agentes que usam a mentira como estratégia política precisam ser punidos – e o PL 2630 avança também nessa direção.

Por fim, a liberdade de expressão sofre com a falta de pluralismo – quando certas visões de mundo monopolizam a esfera pública, silenciando outras. Por isso é necessário regular a mídia, incluindo aí as big techs: para não enviesarem demais o debate a seu favor.

Não custa lembrar que a liberdade de expressão foi uma conquista dos dominados. Ela se afirma contra a censura dos poderosos, pelo direito de dizer que o rei está nu e de contestar as “verdades” oficiais dos donos do poder, dos donos do dinheiro, da igreja.

Uma parte da esquerda parece que esqueceu isso e acha que o jogo do “cancelamento” dá a ela a autoridade para censurar. Isso é ilusório. O debate honesto e livre é bom para o pensamento crítico. O combate às fábricas de mentiras serve para limpar o terreno para a disputa de ideias, não para silenciar ninguém – por mais repulsivas que suas posições possam parecer.

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Luís Felipe Miguel

Professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Demodê - Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades.

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Luís Felipe Miguel

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