Extrema-direita terá ampla vitória nas eleições europeias apesar dos protestos, diz historiador alemão ao DCM

Atualizado em 10 de fevereiro de 2024 às 10:53
100 mil pessoas protestaram em Berlim contra a AfD. Foto: DPA/Berlim

Centenas de milhares de pessoas tomam as ruas das maiores cidades alemãs para protestar contra o partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha). O estopim foi a revelação, pelo jornal et ONG Correctiv, de uma reunião do partido em que os dirigentes discutiam um plano para deportar alemães descendentes de estrangeiros. O local da reunião: um hotel a oito quilômetros da casa onde ocorreu a Conferência de Wannsee, de 1942, que decidiu a “solução final” para a comunidade judaica europeia.

As imagens podem dar a impressão de um país quase unanimemente mobilizado contra o extremismo de direita. Mas, segundo o historiador alemão Patrick Moreau, especialista nesse espectro político do país, o cenário é mais complexo.

Em primeiro lugar, pela fratura que permanece desde a reunificação. “O essencial das manifestações ocorre no oeste e em Berlim. E nos estados herdados do período comunista, as manifestações são infinitamente menos fortes e parcialmente contrabalançadas por manifestações de extrema direita da AfD ou células neonazistas presentes nos Estados do Leste”, explica.

Diante da revelação do plano de expulsar dois milhões de pessoas, as ruas querem que a AfD seja punida. O mundo político alemão está sob um dilema: o que fazer com o partido, segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto?

Em entrevista ao Diário do Centro do Mundo, Patrick Moreau lista as hipóteses avaliadas: extingui-lo, cassar os direitos cívicos de seu ideólogo, o “cripto-nazista” Björn Höcke, ou proibir seu financiamento público.

“Comecemos pela mais simples, a do financiamento. A Corte constitucional de Karlsruhe emitiu uma decisão recentemente sobre um partido de extrema direita, que se chamava NPD e se chama agora Die Heimat (o Lar). Essa decisão consistiu em dizer que o Estado não deve financiar os inimigos do Estado”, aponta.

No caso da primeira hipótese, “os constitucionalistas dizem que, se um procedimento de proibição começar e fracassar perante o Tribunal Constitucional, o partido sairá reforçado desse fracasso”.

Se o oeste se mobiliza, o leste também. A AfD “fanatizou o eleitorado”, avalia Moreau. “É o fenômeno ‘porco-espinho’: as pessoas estão cada vez mais decididas a votar nesse partido. Trata-se de uma herança da República Democrática Alemã. Eles têm a sensação de terem sido enganados pela reunificação, de que não são levados em conta pelas políticas do oeste.”

A leste, nada parece abalar tal convicção. “A AfD colabora nos novos Estados com células que, por sua vez, são violentas, que são neonazistas ou nacional-revolucionárias, identitárias. São grupos ativos às margens da AfD sem serem membros do partido.”

Por mais intuitivas que possam parecer as comparações entre a AfD e o nazismo, Patrick Moreau estima que elas são falsas e contraprodutivas no combate à extrema direita.

“Todos os historiadores na Alemanha dizem que há um perigo em estabelecer uma semelhança muito forte com a época do nacional-socialismo. É um outro mundo.”

Com o mundo político restrito a condenações verbais e perdido quanto ao modo de ação mais eficaz, Moreau acredita que, apesar das manifestações, o partido AfD será capaz de mobilizar um forte eleitorado na ex-Alemanha oriental.

“Todos os historiadores na Alemanha dizem que há um perigo em estabelecer uma semelhança muito forte com a época do nacional-socialismo. É um outro mundo.

Em entrevista ao DCM, Moreau aborda as semelhanças da AfD com outras figuras internacionais de extrema direita e as ligações do partido com a tentativa fracassada de um golpe de Estado na Alemanha no final de 2022. Traça o perfil do líder racialista do partido. E prevê uma “guerra” entre as instituições da União Europeia frente ao reforço da extrema direita nas próximas eleições euro-parlamentares, em junho, e o papel de Viktor Orban, amigo de Bolsonaro, nesse processo.

DCM: Como avalia a sequência de manifestações multitudinárias na Alemanha depois de reveladas conversas do partido AfD sobre a deportação de alemães de origem estrangeira?

Patrick Moreau: é um movimento extremamente complexo. Penso que é necessário primeiro analisar a geografia das manifestações.

O essencial das manifestações ocorre no oeste e em Berlim. E nos estados herdados do período comunista, as manifestações são infinitamente menos fortes e parcialmente contrabalançadas por manifestações de extrema direita da AfD ou células neonazistas presentes nos Estados do Leste. Esta é a primeira dimensão: uma mobilização muito forte no oeste e infinitamente mais fraca no leste. 

Há uma correlação com potência da AfD no plano eleitoral; a AfD é muito menos forte no oeste, enquanto nos novos Estados, com exceção de Berlim, ela tem entre 20%, 25% e 30% dos votos, ou até mesmo mais.

A segunda dimensão é a natureza do movimento. Há duas hipóteses. A primeira considera que a manifestação vem essencialmente da esquerda. A segunda análise, dos sociólogos, considera que é uma manifestação transpartidária.

Uma análise das fotos, não se trata de uma análise realmente empírica, mostra nas manifestações em Berlim, Dortmund e Hamburgo – mais de 500 mil pessoas se manifestaram nas últimas semanas – que há pessoas do movimento antifascista e também pessoas que carregam a bandeira alemã, que sao indiscutivelmente conservadoras. 

O movimento é bastante múltiplo e não tem outra dimensão política a não ser o antifascismo. Isso é evidentemente uma dimensão muito importante, que conduz no entanto a alguns problemas constitucionais.

A demanda dos manifestantes é uma proibição da AfD ou um bloqueio dos subsídios de financiamento da AfD. Uma terceira reivindicação é a proibição dos direitos cívicos de Björn Höcke. Esses três procedimentos são muito complexos a implementar.

Comecemos pela mais simples, a do financiamento. A Corte constitucional de Karlsruhe emitiu uma decisão recentemente sobre um partido de extrema direita, que se chamava NPD e se chama agora Die Heimat (o Lar). Essa decisão consistiu em dizer que o Estado não deve financiar os inimigos do Estado. 

Foi uma bela decisão, o que permitiria talvez, ainda que certos constitucionalistas dizem que não é certeza, proibir o financiamento da AfD, o que enfraqueceria consideravelmente o movimento. Isso é uma dimensão muito positiva.

A segunda dimensão, que é muito mais complexa, é a proibição da AfD. Todos os constitucionalistas e cientistas políticos consideram que a proibição será muito difícil de realizar, por diversas razões.  O nível de proteção acordado pela Constituição alemã aos partidos políticos é muito alto, justamente por causa da experiência do nacional-socialismo.

Para proibir um partido na Alemanha é preciso que ele esteja ativamente em luta contra o Estado de Direito. Isto quer dizer que o recurso à violência, que ele prepara ações armadas. Quanto à AfD, isso é difícil de provar. Não digo que não haja loucos dentro da AfD que almejam a isto, mas fundamentalmente se analisarmos a maneira pela qual a AfD se desenvolve, não é um movimento violento clássico. Por outro lado, há um problema em relação às suas margens.

Patrick Moreau. Foto: arquivo pessoal

A AfD colabora nos novos Estados com células que, por sua vez, são violentas, que são neonazistas ou nacional-revolucionárias, identitárias. São grupos ativos às margens da AfD sem serem membros do partido, mas que representam um problema. Será possível proibir a AfD com base em suas colaborações? Isso será muito difícil.

DCM: Com relação à derrota da AfD nas eleições municipais recentes de Turíngia, trata-se de uma consequência dessas revelações e das manifestações?

Patrick Moreau: Não, ainda não. Isso se deveu a um dos últimos aspectos do cordão sanitário: todos os partidos que não a AfD se uniram para impedir a vitória dela. Ainda assim, ela não ficou longe. A AfD obteve 44%. Os democratas obtiveram 56%. 

O que se observa atualmente é o recuo nas pesquisas da AfD, um recuo entre dois e três pontos percentuais. Para nós especialistas, isso não quer dizer nada. Há dois reflexos entre as pessoas de extrema direita: eles se sentem muito orgulhosos de pertencer a esse partido e o dizem e há aqueles que se sentem próximos do partido mas não têm vontade de dizê-lo e se escondem.

Com a margem de erro nas pesquisas, dois pontos para cima ou para baixo não quer dizer grande coisa. Em três semanas será possível dizer se funcionou ou não.

Do ponto de vista sociológico, as pessoas próximas ou dentro da AfD se mobilizam cada vez mais para votar no partido. Essas pessoas, essencialmente do leste, estão convencidas de que são atacadas pelo oeste e de que se defendem. Eles votaram na AfD custe o que custar. Nos novos estados, a AfD pode atingir um nível muito alto.

DCM: Como você observa esse plano de deportação de alemães de origem estrangeira?

Patrick Moreau: O impacto midiático é surpreendente. Isso foi transformado em um enorme acontecimento político. Isso não tem nada de novo. Desde 2015, encontram-se discursos da AfD sobre a re-emigração, tudo que vem da nova direita no plano ideológico, e tudo que é senso comum na extrema direita.

A maneira como isso foi apresentado pelo Correctiv, o jornal que descobriu a reunião… Não era um encontro tão secreto. Eu estava sabendo. O que a AfD disse é dito pelos identitários há muito tempo. Os identitários existem na Alemanha há pelo menos dez anos e nunca tiveram problemas com essa tese.

DCM: Você aborda a AfD como um partido que não é classificado como neonazista. Mas alguns elementos chocaram a opinião pública, principalmente em relação à proximidade do local da reunião com o de Wannsee. É exagerado dizer que a AfD quer aplicar uma política nazista?

Patrick Moreau: Ao meu ver, a AfD nunca aplicará uma política desta natureza. 80% dos alemães não vota na AfD, então a democracia alemã é extraordinariamente sólida. A AfD tem 20% dos votos, segundo as pesquisas, e não tem nenhuma chance de tomar o poder na Alemanha. Seria algo absurdo.

Não estamos na época da República de Weimar. Eu escrevi minha primeira tese de doutorado sobre o nazismo de esquerda. O nacional-socialismo histórico não tem nada a ver com a situação histórica atual na Alemanha.

Há desempregados, mas não há dez milhões. Há um partido AfD, mas não 50 mil agentes da SA circulando pelas ruas. Todos os historiadores na Alemanha dizem que há um perigo em estabelecer uma semelhança muito forte com a época do nacional-socialismo. É um outro mundo.

Evidentemente há semelhanças surpreendentes. Há a impressão de que é a deportação dos judeus para Madagascar que se reproduziria no encontro de Wannsee para o extermínio dos judeus. Não é isso que foi dito na conferência (da AfD).

O tema da reunião foi: como instrumentalizar o medo da imigração na Alemanha para que medidas como o fechamento de fronteiras seja imposto e que efetivamente se expulsem as 380 mil pessoas que estão ilegalmente na Alemanha. Há um efeito de distorção midiática interessante de se observar mas que não tem a ver com a realidade histórica e política.

Isso não é para eximir a AfD de qualquer suspeita. Como historiador e cientista político, é preciso cautela. Do contrário, vai haver um engano de combate. Corre-se o risco de enganar-se de combate e perder em eficácia.

Voltando à questão da proibição do partido, os constitucionalistas dizem que, se um procedimento de proibição começar e fracassar perante o Tribunal Constitucional, o partido sairá reforçado desse fracasso. É um jogo muito complexo a ser jogado.

O governo alemão é muito prudente nesse tema. A maioria dos políticos, inclusive de esquerda – eu não me refiro ao Die Linke e a uma parte dos ecologistas, refiro-me aos socialdemocratas, estima que a via do Tribunal Constitucional é muito arriscada.

DCM: Quais são as semelhanças e diferenças entre a AfD e outras figuras de extrema direita como Donald Trump, Javier Milei e Jair Bolsonaro?

Patrick Moreau: Eu diria que o mais similar é Trump. Conheço pouco a América do Sul. O novo presidente da Argentina me parece ser um hiper-liberal, não um fascista tradicional. Em termos técnicos, Trump é certamente o mais parecido. Há muitos elementos comuns entre os dois partidos (Republicanos). 

Se eu fizesse uma tipologia de partidos na Europa, há outros que estão exatamente na mesma tipologia da AfD. Esse é o caso do FPÖ, na Áustria, com os mesmos temas. Seu líder, Herbert Kickl, fala abertamente e sem nenhum problema na Câmara dos Deputados em Viena de uma política de re-emigração e isso não incomoda muita gente na Áustria. 

Para nós cientistas políticos que investigamos essa questão, os partidos iliberais, como o Fidesz na Hungria, vão ter ampla vitória nas próximas eleições europeias. Eles vão certamente tornar-se a terceira força política e vão exercer um papel cada vez mais importante nas decisões que serão tomadas no Parlamento Europeu. Vai haver uma guerra entre o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia.

A extrema direita europeia vai se aliar. Eles estão trabalhando em grupo, apesar das tensões internas. Eles vão exercer um papel político cada vez maior. Nas eleições nacionais de alguns países, vão obter ampla vitória.

Marine Le Pen pode chegar ao poder na França. O FPÖ pode talvez chegar ao poder na Áustria. Há um grande número de países nos quais a extrema direita está em boa posição e cada vez mais confortável.

DCM: Você disse que no caso do plano de deportação da AfD houve exagero por parte da mídia. Mas além de pessoas em situação irregular, ele também previa a deportação de alemães de origem estrangeira…

Patrick Moreau: Exatamente. A conferência representa um problema constitucional justamente por esse aspecto. E é uma das raras chances constitucionais de poder proibir o financiamento da AfD. Na Constituição alemã, a proteção do indivíduo corresponde ao nível supremo. A conferência da AfD toca nesse ponto essencial, portanto aí há um verdadeiro problema. 

Quanto aos outros aspectos, como deportar pessoas que estão em situação ilegal na Alemanha, todos os partidos políticos são mais ou menos a favor, com a exceção do partido A Esquerda (Die Linke) e de uma parte dos ecologistas.

Eu não falei em exagero, mas em amplificação midiática. Foi bem apresentado pelo grupo (Correctiv), do qual sou assinante. Fizeram um bom trabalho. Mas há distorções na repercussão midiática, que são perigosas para a eficácia do combate antifascista. 

O que importa é reduzir a influência da AfD. É preciso fazê-lo com base em métodos, técnicas e uma ideologia baseadas na realidade e não no imaginário. E ainda assim, o primeiro imaginário que me incomoda como historiador é a comparação unidimensional com o nacional-socialismo dos anos 1930. A Alemanha não é Weimar. A crise econômica não é comparável. A AfD não é comparável ao NSDAP. Para os historiadores e cientistas políticos, é uma evidência.

Que seja um partido repugnante, é evidente. Para conseguir combater a extrema direita, o que faço há 40 anos, é preciso fazê-lo de modo racional e eficaz. Se besteiras forem ditas, a AfD só será reforçada, o grande medo da vida política alemã.

DCM: A maneira como o governo e os partidos políticos reagem à AfD é eficaz no sentido de contê-la ou esse partido fanatizou seu eleitorado?

Patrick Moreau: Evidentemente, ele fanatizou o eleitorado. É o fenômeno “porco-espinho”: as pessoas estão cada vez mais decididas a votar nesse partido. Trata-se de uma herança da República Democrática Alemã. Eles têm a sensação de terem sido enganados pela reunificação, de que não são levados em conta pelas políticas do oeste. Há todo um sistema de protesto que num primeiro momento serviu ao partido A Esquerda, um partido pós-comunista, e que agora serve à AfD.

Não há política governamental porque eles não sabem se vão se esfacelar se forem a Karlsruhe (sede do tribunal constitucional). Sobre a última questão, a respeito da supressão de direitos cívicos de Björn Höcke, que é o chefe ideológico, nunca houve esse tipo de cassação. Todos os constitucionalistas creem que é um processo difícil de se aplicar e funcionar. 

O único procedimento que tem chances de prosperar é a pista sobre a qual trabalha o Ministério do Interior, isto é, o bloqueio de subsídios para o financiamento da AfD, pois os juízes de Karlsruhe disseram que os inimigos da liberdade não têm de ser financiados pelo Estado.

Todas as outras dimensões são para todos os partidos, com exceção da Esquerda e uma parte dos verdes, muito hipotéticas e perigosas. Seria o pior dos cenários: que a AfD decole nas pesquisas porque ganhou o processo em Karlsruhe.

DCM: Então o que você diz que é que os partidos estão mais na condenação verbal e em reflexões internas sobre modos de ação?

Patrick Moreau: Exatamente. Eu trabalho com meus colegas alemães e trabalhamos sobre tudo que foi dito pela AfD. Remontamos a 2015 para buscar todas as falas extremistas contra o Estado de direito. A AfD nao é idiota, eles têm muitos juristas e advogados.

DCM: Qual o perfil de Björn Höcke?

Patrick Moreau: Ele fazia parte de uma ala que não existe mais. Sua ideologia é o que chamamos de “folkisch”, que é uma ideologia de tipo racialista. Todos os temas clássicos são contemplados por ela: a grande substituição, a “remigração”, mas encontram-se também posições sobre a hierarquia racial. Isso é o que remonta ao nacional-socialismo.

Muitos discursos abordam a desigualdade entre os homens e as raças. Podemos constatar claramente que Höcke é um cripto-nazista. Por outro lado, se forem consideradas as posições de Alice Weidel, nada nesse sentido será encontrado. Ela é lésbica, vive com uma mulher que provém de um país asiático. Ela não diz nada nessa direção.

Dentro da AfD, é possível encontrar muitas pessoas com posições muito próximas do nacional-socialismo e também pessoas com posições neoconservadoras, como as de Trump, a Alemanha primeiro, contra a Europa, contra a imigração, a favor do grande retorno da indústria alemã sobre seu solo.

Eles são pró-Rússia, ainda que Trump não o seja tanto. A dualidade de posições dentro do partido torna as coisas complicadas. Höcke não é oficialmente chefe do partido, portanto é uma voz entre outras, o que dificulta o trabalho de analistas como eu. Se eu me concentro só nos discursos de Höcke, não entendo nada da AfD. Se me concentro só nos discursos de Weidel, não entendo nada da AfD.

Björn Höcke. Foto: Sandro Halank/ Wikimedia Commons

DCM: Essa força da extrema direita na Europa, que você mencionava em relação às próximas eleições parlamentares, mostra que o fenômeno da extrema direita na Alemanha tem uma dimensão que a transcende. Qual dimensão?

Patrick Moreau: Claro. Deve-se à crise europeia. Quando dou uma aula sobre a Europa, tenho dificuldades em definir qual é a mensagem europeia, o que será a construção europeia. Ela vai para um sistema federal? Ela vai para uma Europa de nações?

Há fatores de crise gigantescos. O primeiro fator de crise é econômico e de imigração. Todos os europeus veem a imigração como o principal problema para seus países. Enquanto a imigração não for regulada, a extrema direita continuará progredindo. A segunda dimensão é a crise econômica e as distorções entre países. O fosso entre países ricos e pobres não foi resolvido. 

Nos países do leste, como a Hungria, a Polônia, a Eslováquia, a República Tcheca, surgiu uma pulsão iliberal, com líderes que não são da extrema direita clássica, que respeitam as formas do Estado de Direito, que vivem seus princípios fundamentais – liberdades, controle da imprensa, etc. A situação divergente no interior da Europa a leva a uma situação de crise permanente.

A última dimensão é a questão russa. Grande parte da Europa se prepara para a guerra. O que se faz na Suécia, na Noruega, na Polônia… Um grande número de países espera uma guerra. A extrema direita prospera em parte por causa da questão russa. 

Com exceção da Suécia, a extrema direita em quase todos os países é pró-russa. Seu discurso é de afirmar que se a guerra for parada ou se os ucranianos forem vencidos a Rússia não terá mais razões objetivas para querer fazer uma guerra contra a Europa porque ela terá restabelecido seus direitos sobre o que constitui o país russo. A extrema direita pensa que a única maneira de evitar a guerra é a vitória da Rússia sobre a Ucrânia.

Deniev (deputado tchetcheno) disse na Duma (parlamento russo) que a Rússia apoia todos os partidos de extrema direita na Europa é a única que pode evitar uma guerra na Europa porque o imperialismo americano não seria mais ofensivo quando a Rússia atingisse seu objetivo.

DCM: A AfD tem ligações com a tentativa de golpe recente na Alemanha*?

Patrick Moreau: Sim e não. Sim porque alguns membros da AfD estavam presentes, inclusive uma ex-deputada do Bundestag e que era juíza de profissão. A tentativa de golpe foi preparada por pessoas acima de 60 anos, ex-soldados de elite ou ex-militantes de diferentes partidos. O sonho era tomar o Bundestag (parlamento alemão), assassinar os deputados e que o exército se revoltasse, o que é ridículo pois o exército alemão tem muito pouca veleidade. Tudo que era de extrema direita no exército alemão foi reformado. 

O nível de periculosidade era essencialmente verbal, mas é fato que eles haviam preparado uma tomada do Estado, criar uma comissão especial para fuzilar as pessoas, os partidos democráticos, comunistas, etc.

A organização contava com 250 pessoas. Não vejo como uma tal organização poderia tomar o poder de um país de 86 milhões de habitantes. Havia membros da AfD dentro desse grupo.

DCM: A AfD pertence à mesma rede que Vox e Fidesz?

Patrick Moreau: Não. Fidesz é um partido iliberal, não nacional-populista. O iliberalismo é uma prática política, não uma doutrina. Ela consiste em tomar o controle do aparelho do Estado, manter as formas de participação democrática, mas neutralizar o jogo normal dos partidos, neutralizar os tribunais para estabelecer uma ditadura leve. A Hungria de Orban é um arquétipo de posições liberais. Há outras, como o ocorre neste momento na Eslováquia.

A AfD parece com o FPÖ. Eles compõem uma família política. Há um grande fundo comum, mas imensas diferenças regionais. A grande esperança da maior parte desses partidos é conseguir colaborar no nível europeu, sob a liderança de Orban. Houve um encontro no mais alto nível entre Orban e dirigentes de grandes partidos políticos. A proposta é que Orban seria o instrumento de aproximação de todos esses grupos para que eles façam pressão sobre a Comissão Europeia e ao mesmo tempo funcionem de modo independente.

Os Irmãos da Itália tem problemas com o FPÖ sobre a questão do Tirol do Sul, então cada um continuaria com sua própria doutrina mas agiriam em comum contra a Comissão Europeia. A grande ideia é modificar a Europa por dentro. Como diz Höcke, em caso de fracasso nessa transformação, o próximo passo seria um Dexit, a Suécia sairia da União Europeia – Sexit – e ela voltaria a uma Europa de nações. A estratégia é construir um grupo de pressão contra a Comissão Europeia.

 

*25 pessoas foram presas pela polícia alemã em 7 de dezembro de 2022 suspeitas de planejar um golpe de Estado.