Com Fagin, o Judeu

 

Dickens era antissemita?

Por sugestão de Tomás, li “Fagin, o Judeu”. É uma história em quadrinhos com a qual Will Eisner, ele próprio judeu, coloca Dickens diante de Fagin, o sórdido, repulsivo personagem de Oliver Twist que explora crianças pobres. Fagin narra sua vida a Dickens na véspera do seu enforcamento. A Companhia das Letras lançou o livro no Brasil.

Primeiro, é preciso destacar o engenho de Eisner: foi uma grande idéia a dele, complementada por uma soberba execução. Deve-se usar com parcimônia o adjetivo “genial”, mas ele cabe para a obra de Eisner.

Eisner nos faz ver como viviam os judeus na Inglaterra nos dias em que Dickens escreveu Oliver Twist, meados do século 19. É, neste sentido, uma lição de história.

A Inglaterra era uma espécie de refúgio para judeus que sofriam perseguição em outras partes da Europa. Havia duas classes de judeus. Uma, sefardita, estava quase que inteiramente integrada, e dela sairia, logo depois, um primeiro-ministro britânico, Benjamin Disraeli. Eram judeus oriundos de países como Espanha e Portugal. A outra era miserável e excluída. Fagin pertencia à segunda classe, a asquenazita, e vinham da Europa Oriental e da Europa Central.

Usar crianças pobres e desamparadas para roubos era comum no submundo de Londres na era vitoriana. Quando foi acusado de antissemitismo, Dickens lembrou que praticamente todos os exploradores de crianças, então, eram judeus como Fagin. Ele, neste sentido, apenas registrou um fato. Não inventou nada.

Mas.

Mas onde Dickens definitivamente errou foi no exagero do uso da palavra “judeu” no romance, escrito na forma de folhetim e publicado num jornal. Quase sempre que é feita menção a Fagin, vem a palavra “judeu”.

Uma amiga judia de Dickens se queixou disso a ele. Dickens, que de antissemita nada tinha, reconheceu o erro, e cortou nas edições posteriores boa parte da palavra “judeu”. Numa espécie de mea culpa, num romance posterior ele criou um personagem judeu que era um quase santo.

Mas quem ficou para a história foi mesmo Fagin.

Dickens fez mal para os judeus na sua Inglaterra ao criar Fagin? Não. A Inglaterra já era então suficiente tolerante em assuntos religiosos. Como falei anteriormente, em breve os ingleses teriam um primeiro ministro judeu. (Quem sofreu mesmo sob os ingleses foram os católicos a partir de Henrique 8, no século 16.)

O que Dickens fez foi, ao contrário, um bem – para as crianças de Londres. Oliver Twist, uma delas, aliás, jogou luzes sobre como muitas delas viviam na cidade.

Quanto a Fagin, em si, bem, clap, clap, clap: palmas para ele por ter inspirado a extraordinária HQ de Will Eisner.

Paulo Nogueira

O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

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