Lei das biografias: falta bom senso no cabo de guerra entre biógrafos e biografados

Atualizado em 17 de outubro de 2014 às 17:12

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Quase nada é óbvio quando o assunto é direito à liberdade de expressão versus direito à privacidade. Diante dos argumentos apresentados ultimamente por defensores de ambos, foi isso e apenas isso que ficou óbvio. Todo o resto é questionável.

Há bons argumentos dos dois lados. Veja o já célebre episódio Paula Lavigne versus Barbara Gancia: Paula fez um workshop com a jornalista sobre sentir-se invadido. “Você é gay assumida, né?”, perguntou. Barbara respondeu que sim. “Qual o nome da sua namorada?”. “Marcela”, disse Barbara. “Agora viu na prática como é ruim ter a privacidade invadida”.

Há uma falha na teoria de Paula. Ela presumiu que seria desagradável para a jornalista expor isso, quando poderia muito bem não ser. Se Barbara quisesse ganhar a discussão, bastava não se incomodar. Mas não foi o que aconteceu. Barbara não gostou. Sua resposta, segundo o site do O Globo, teria sido a seguinte: “Paula estava ali para falar de biografia e veio perguntar coisas da minha intimidade que não interessam a ninguém”. E não é exatamente isso que um biografado sente? “É a mesma coisa de eu querer falar dos filhos dela”. Se a gente escrevesse uma biografia da Paula, escreveria sobre os filhos dela, ainda que superficialmente – como foi a aparição de Marcela no assunto. “Não sou famosa, não desperto interesse público”. Algum desperta, tanto que estava lá na discussão – e está sendo discutida aqui.

A resposta da jornalista foi a confirmação de que Paula usou de uma artimanha válida para mostrar que a sensação de invasão é de fato incômoda. Essa é uma verdade.

Mas há o outro lado, que também tem seus argumentos coerentes e sólidos. Paulo Moreira Leite escreveu recentemente em seu blog no site da IstoÉ que “num país onde proliferam biografias autorizadas e textos escritos sob encomenda (…) destinados a comprar submissão de autores e promover formas variadas de culto à personalidade, a liberdade para apurar e investigar a história de uma pessoa é um exercício único, precioso – e sem preço”.

Este argumento, basicamente, diz que a história não pertence ao biografado – ela é de domínio público. Seu corpo, sim, é seu, tal como suas ações presentes. Mas a repercussão delas na história foge do seu controle. Essa é também uma verdade.

Ninguém pode impedir que se escreva um livro sobre como Hitler conquistou a Polônia. Isso é história, é parte do que nós somos. Porquê haveríamos de impedir que alguém escreva um livro sobre como a Tropicália se espalhou pelo Brasil?

Mas há falhas nessa teoria também. Paulo Moreira Leite, no artigo, defende que a liberdade de expressão é um direito absoluto. Não é. Há reservas. O Pânico na TV (agora Pânico na Band) é prova disso. Eles invadiram o funeral da cantora Amy Winehouse para fazer humor. Eles colocaram uma grua na janela da atriz Carolina Dieckman para filmar seu bebê dentro de casa. Não importa o quanto você possa odiar alguma delas. Isso é inaceitável, moralmente indefensável. Portanto, você não pode fazer qualquer coisa em nome da liberdade de expressão. Eu não posso gritar por aí que você é um ladrão, por exemplo. Simplesmente não posso.

Diante dos argumentos dos dois lados, me parece que há um conceito-chave nesta história que precisa ser desmistificado: o da “pessoa pública”. Quando os biógrafos invocam o termo para justificar uma possível invasão de privacidade, eles estão basicamente defendendo que há duas classes de gente – as “particulares” e as “públicas”. Soa tipo Bradesco e Caixa Econômica – um faz o que quiser, o outro tem que prestar contas. Mas não é assim com seres humanos. Sente-se com uma “pessoa pública” e você verá que é só uma pessoa – que muitas vezes foi empurrada à fama por uma vocação. E que pode muito bem gostar dos flashes, mas pode se incomodar também.

Deixando de lado esse conceito e igualando as pessoas, é possível ser menos míope diante da questão. Aí então é só lembrar da frase que a sua avó te disse no parquinho quando você deu uns sopapos no menino menor: “não faça com os outros o que não quer que façam com você”. Ninguém quer ser invadido. Logo, não se deve invadir. Todos querem poder se expressar livremente. Logo, não se deve impedir.

Mas ainda há um último detalhe nesta história. Celebridades costumam ser mimadas. Muitas vezes, não é nem por querer – elas são as maiores vítimas desse mimo. Ringo Starr, baterista dos Beatles, afirmou no documentário Antology que ficou impressionado com a quantidade de puxa-sacos que Elvis Presley tinha à sua volta. E ele era um Beatle.

Assim, as pessoas biografáveis deveriam tentar exercitar sua capacidade de relevar. A história é altamente imprecisa, porque é contada por quem não estava lá. Sempre. É um telefone sem fio. Do biógrafo de Roberto Carlos ao historiador que estuda Cleópatra, eles vão errar muito.

Me parece que a resolução possível, se é que há, é determinar os limites das biografias. Entrevistar pessoas próximas não é off-limits. Mexer no lixo da pessoa, é. Contar uma história, ainda que com uma ou outra imprecisão não é off-limits. Falar um absurdo, é.

Claro que essas afirmações são apenas a minha impressão sobre o assunto. Para determinar esses limites de forma precisa, ou o mais precisa possível, haveremos de falar muito ainda sobre isso. O ideal é não ferir ninguém – nem a liberdade de expressão, nem a privacidade. Pode existir um ponto de equilíbrio, ou algo próximo disso, mas nesse assunto não se deve ser reducionista. A única resposta simples que pode haver nessa discussão tão complexa é que há de se agir com bom senso. Dos dois lados.

O cabo de guerra que se fez não ajuda em nada.