Faltou prova e sobrou convicção: Gabriela Hardt repetiu Moro na condenação a Lula. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 6 de fevereiro de 2019 às 18:38
Gabriela, Lula e Moro

A sentença da juíza Gabriela Hardt tem 360 páginas. Deve ser recorde na Justiça — a de Moro que condenou Lula tem 238 páginas, e já era considerada muito extensa.

Mas o excesso de palavras não significa que seja um texto convincente. Pelo contrário. Até para um leigo soa estranho quando a juíza condena Lula por corrupção passiva (condenou também por lavagem de dinheiro) e escreve:

“Não vislumbro configurado o ato de ofício do Presidente da República” (página 339).

Nem poderia haver ato de ofício.

Lula não era mais presidente da república, por exemplo, quando houve a reforma da cozinha no sítio de Atibaia, em 2014, pela OAS.

Portanto, se não era funcionário público, por que ele foi condenado por um crime típico de funcionário público?

O desejo de condená-lo.

Ainda na fase de instrução do processo, quando ouvia testemunhas, Gabriela Hardt já dava indicações de que queria condenar o ex-presidente.

Foi assim, por exemplo, na tomada dos depoimentos de Emílio Odebrecht, dono de uma das empresas acusadas de corrupção, e de um dos diretores da companhia à época, Alexandrino de Salles Ramos de Alencar.

Os depoimentos foram favoráveis ao ex-presidente, mas a juíza se mostrava impaciente com as respostas que não eram coerentes com a denúncia do Ministério Público Federal.

Alexandrino de Alencar contou que quem pediu que a empreiteira fizesse um galpão no sítio foi Marisa Letícia, e não era nenhuma obra suntuosa, era apenas um local adequado para que fosse guardada parte do acervo presidencial.

“E ela me fez o pedido. Só que ela me disse o seguinte: Mas… tem uma coisa: se trata de uma surpresa. O presidente não está sabendo disso. Eu falei: Ok. Mas ela me disse: precisa terminar em dezembro”, afirmou.

O presidente da empresa, Emílio Odebrecht, concordou, conforme ele próprio disse no depoimento a Gabriela Hardt.

“O que eu fiz foi aprovar (a reforma), quando o Alexandrino me trouxe o assunto a pedido da dona Marisa”, afirmou.

Gabriela Hardt perguntou:

— E o senhor aprovou com alguma condicionante?

“Eu diria que, pessoalmente, ele nunca me pediu nada, não me pediu nada”, respondeu.

Ouviu-se uma manifestação de impaciência da juíza:

“Hum-hum, hum-hum”.

A juíza insistiu:

“Pessoalmente ao presidente, esta foi a única retribuição?”

Emílio e Alexandino tinham deixado claro que Lula não havia pedido pela reforma, atitude que descaracteriza qualquer conduta criminosa.

No mesmo interrogatório, Emílio contou que conversava com todos os presidentes, exceto com Itamar Franco, mas destacou que o diálogo era mais fluente com três: Lula, Fernando Henrique Cardoso e o general Ernesto Geisel.

Por que eram corruptos?

Não, Emílio quis dizer que as conversas tinham maior profundidade, porque eram “diferenciados”.

Como quem buscava as palavras precisas, acrescentou:

“As escolhas estavam muito acima dos interesses individuais. Isso  predominava nesses três”, disse, para em seguida acrescentar que conheceu Lula através de Mário Covas, muito tempo antes do ex-sindicalista se tornar presidente.

Na sentença em que condenou Lula, e também Emílio Odebrecht e Alexandrino de Alencar (estes não cumprirão pena em razão do acordo de colaboração), Gabriela Hardt faz referência ao depoimento de Emílio Odebrecht:

“Houve alguma efetividade na colaboração de Emílio Odebrecht, embora em muitos momentos ele negue que seu agir tenha sido com intuito criminoso, o que não se coaduna com outros relatos e provas apresentadas.”

E que provas são estas?

Nenhuma que comprove uma relação criminosa entre as empreiteiras e o ex-presidente Lula, algo que tenha sido feito em troca de um favor do governo.

Relatos que a juíza leva em consideração são de dois réus na mesma ação, Leo Pinheiro, ex-presidente da OAS, e Paulo Roberto Valente Gordilho, que era diretor da empresa.

Os dois tiveram redução de dois terços da pena — o máximo que o juiz pode conceder —, por, segundo Gabriela Hardt, ter fornecido detalhes que reforçaram a convicção dela “acerca dos fatos delituosos”.

Leo Pinheiro e Paulo Roberto Gordilho citaram a existência de um caixa geral de propina, só que nunca foi encontrado um documento que confirme a existência desse caixa.

Por que Leo Pinheiro e Alexandrino não foram tratados como delatores? Nessa condição, caso contassem alguma mentira, poderiam perder benefícios.

Já como réus não são obrigados a falar a verdade. No caso dos réus, a verdade pode ajudar a produzir contra eles mesmos, e o dever de produzir provas é de quem acusa, não de quem se defende.

Se podem mentir, não é razoável que se tome seu depoimento como fundamento para condenações.

Sergio Moro já tinha trilhado esse caminho, ao validar como verdade o depoimento do mesmo Leo Pinheiro, no caso do triplex do Guarujá.

Gabriela fez agora o que dela se esperava: também condenou Lula.

Já tinha tinha sido hostil ao ex-presidente e tem muito perto dela opinião definitiva sobre Lula

Seu pai, engenheiro químico que trabalhou na Petrobras, era ativo na rede social nos ataques a Lula.

“A quadrilha do Lula instalada na Petrobras não roubou só bilhões. Roubou o futuro da empresa”, escreveu ele, em uma publicação no Facebook.

A substituta de Moro também teve um artigo elogioso ao trabalho de Moro na Lava Jato publicado em uma organização norte-americana ligada à presidência dos Estados Unidos, o Wilson Center.

Desde 2006, esse think thanks tem um departamento voltado para temas brasileiros, o Institute Brazil, dirigido pelo jornalista Paulo Sotero, ex-correspondente do Estadão.

O Wilson Center tem outros tentáculos e foi acusado de estimular a tentativa de golpe contra o governo de Recep Tayyip Erdogan, da Turquia.

No Wilson Center, já fizeram palestras, além de Sergio Moro, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, e entre patrocinadores dessas atividades estão grandes petroleiras, concorrentes da Petrobras.

No artigo, publicado em 2017, Gabriela escreveu:

“É óbvio que, ao lutar contra forças poderosas, você deve esperar que eles usem todos os meios à sua disposição para manter o poder que conquistaram. No entanto, continuo a acompanhar de perto o trabalho duro de pessoas bem intencionadas e bem preparadas que enfrentaram novas batalhas nos últimos três anos e meio. Por tudo isto, espero e confio que esta crise apresentada pela divulgação das investigações da Lava Jato sirva como uma verdadeira janela de oportunidades para que possamos ter um país mais forte e honesto.”

Esse trabalho de pessoas bem intencionadas resultou na prisão de Lula, num processo que teve uma condenação sem provas, e, com isso, na pavimentação do caminho que levou o Brasil a Jair Bolsonaro.

Agora, com a segunda condenação de Lula, se criam condições para o cumprimento da promessa de Bolsonaro em campanha:

“O Lula vai apodrecer na cadeia”.

No que depender de juízes como foi Moro e Gabriela Hardt, vai mesmo.

Em tempo: Gabriela Hardt, pouco tempo antes de assumir a Vara de Moro como interina, participou de um debate no Institute Brazil, no Wilson Center.