Família pede ao STJ para não transferir caso Marielle para a PF, onde Bolsonaro manda e desmanda

Atualizado em 27 de maio de 2020 às 12:18
Nome do presidente Jair Bolsonaro foi envolvido no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco (Isac Nóbrega/ PR/ Divulgação / Mídia Ninja/Reprodução)

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) deve julgar na próxima quarta-feira a ação que pede a transferência da investigação sobre o assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes para a Polícia Federal.

Se isso acontecer, vai-se embora a expectativa de que possa haver elucidação do caso. Por causa desse risco, a família de Marielle, apoiada por organizações de direitos humanos, enviou carta aos ministros do STF que compões a 3a. Câmara Criminal, onde a ação será julgada.

Pede que a investigação seja mantida no Ministério Público do Estado e na Polícia Civil do Rio de Janeiro. O risco maior é ter a investigação na órbita de influência de Jair Bolsonaro, que interveio na Polícia Federal do Rio antes que alguém f… alguém da família dele ou um amigo.

“Não podemos deixar de manifestar que o atual contexto político do país ampliou nossas preocupações. Ficamos estarrecidos/as com o pronunciamento e as notícias que mostram que as interferências antirrepublicanas do sr. Presidente da República nos cargos de chefia da Polícia Federal”, escreveram os familiares de Marielle (ver íntegra da carta abaixo).

Quem pediu a federalização do caso foi a ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, quando ainda chefiava o Ministro Público Federal. Raquel foi nomeada por Michel Temer e não deixou boas recordações em boa parte dos procuradores.

Foi ela quem interferiu, diretamente e fora dos autos, para que a Polícia Federal, em julho de 2018, descumprisse ordem legal para a soltura do ex-presidente Lula.

Augusto Aras poderia ter retirado o pedido da antecessora, mas preferiu manter a ação.

Nos bastidores do STJ, comenta-se que a relatora do caso, Laurita Vaz, já teria decidido pela manutenção do caso no Rio de Janeiro.

Nestes tempos estranhos, no entanto, as decisões podem mudar de uma hora para outra. Levar o caso para a esfera federal coloca a investigação sobre o assassinato de Marielle na órbita de influência direta de Jair Bolsonaro, diretamente interessado no resultado do inquérito.

Um dos executores do assassinato, o sargento da reserva da PM e miliciano Ronnie Lessa, é vizinho dele no condomínio Vivendas da Barra.

O cúmplice de Lessa, Élcio de Queiroz, esteve no condomínio no dia do crime. Bolsonaro foi citado no depoimento de um porteiro do Vivendas da Barra como o autor da ordem para que Élcio entrasse no condomínio.

A notícia foi divulgada pelo Jornal Nacional e provocou uma reação desequilibrada de Bolsonaro, que gravou vídeo diretamente de Riad, na Arábia Saudita, onde ele se encontrava em viagem oficial.

Acionado por Bolsonaro, Sergio Moro, ministro da Justiça à época, providenciou outro depoimento do porteiro, investigado sob ameaça de enquadramento na Lei de Segurança Nacional.

O porteiro voltou atrás, mas ninguém ainda explicou por que, nos registros da portaria em 14 de março de 2018, dia em que Marielle e Anderson foram assassinados, aparece o número da casa para onde Élcio iria: 58, que é o endereço de Bolsonaro.

Ainda que Bolsonaro tenha sido descartado da investigação, a suspeita é que os mandantes do assassinato da vereador PSOL sejam ligados às milícias do Rio de Janeiro, e as milícias, como se sabe, são ligadas à família dele.

Segue a carta enviada ao STJ:

Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020.

Excelentíssima Senhora Relatora Ministra Laurita Vaz

Excelentíssimo Senhor Presidente da Terceira Seção Ministro Nefi Cordeiro

Excelentíssimo Senhor Ministro Felix Fischer

Excelentíssimo Senhor Ministro Jorge Mussi

Excelentíssimo Senhor Ministro Sebastião Reis Júnior

Excelentíssimo Senhor Ministro Rogerio Schietti Cruz

Excelentíssimo Senhor Ministro Reynaldo Soares da Fonseca

Excelentíssimo Senhor Ministro Ribeiro Dantas

Excelentíssimo Senhor Ministro Antonio Saldanha Palheiro

Excelentíssimo Senhor Ministro Joel Ilan Paciornik

As famílias de Marielle Franco e Anderson Gomes, apoiadas pelas organizações de direitos humanos, movimentos sociais e pessoas abaixo assinadas, dirigem-se a Vossas Excelências para pedir que o Incidente de Deslocamento de Competência no 24, cuja sessão de julgamento está agendada para o próximo dia 27 de maio, seja julgado improcedente e, consequentemente, não sejam federalizados o processo ou inquéritos que investigam referidos assassinatos.

Temos dedicado nossas vidas a acompanhar o processo e as investigações de perto, o que nos causa um profundo desgaste emocional e ainda mais dor. Contudo, por amor e respeito a memória de Marielle e Anderson, tornou-se prioridade em nossas vidas cobrar justiça para ambos.

O mundo, chocado com tamanha brutalidade e entendendo a dimensão política e social presente na articulação deste crime, veio, ao longo destes dois anos, manifestando apoio não só a familiares, mas a todos os brasileiros.

Este apoio nos tem servido também como alicerce para seguirmos a jornada junto ao Poder Judiciário em busca da elucidação do caso. Nesse sentido, atuamos como assistentes de acusação no processo que apura a responsabilidade dos autores diretos do crime, Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, em tramitação na Justiça do Rio de Janeiro, no qual já consta decisão determinando o julgamento dos acusados pelo Tribunal do Júri. Consideramos que este é mais um motivo para que o caso permaneça sob a responsabilidade das instituições de Justiça estaduais.

Desde que soubemos do pedido apresentado pela Procuradoria Geral da República, temos expressado nosso posicionamento contrário e nossa elevada preocupação com a possibilidade de federalização do caso.

Muitas são as razões fáticas e jurídicas que nos levam a acreditar que a federalização do caso não é o caminho que as instituições de Justiça devam seguir para garantir a responsabilização de todos os envolvidos no bárbaro crime que tirou a vida de nossos familiares.

Em que pese estar evidenciado que os crimes praticados configuram grave violação de direitos humanos, que impõe ao Estado brasileiro compromissos decorrentes de tratados internacionais, não ficaram demonstradas pela PGR falhas nas investigações capazes de configurar a incapacidade das autoridades estaduais.

Ao contrário do alegado pela PGR, a federalização do caso revela-se justamente como a abertura do caminho para a impunidade dos responsáveis pela prática dos crimes.

Defendemos que o processo e as investigações tramitem de maneira segura, comprometidos com a verdade dos fatos, que sejam transparentes e respeitem o direito efetivo de participação de nossas famílias, cujo sofrimento é ainda agravado pela contradição entre o sigilo e os incontáveis vazamentos de conteúdos das investigações e especulações que só tumultuam a já difícil e complexa investigação do caso.

Consideramos, Senhoras e Senhores Ministros, que todas as instituições de Justiça devam colaborar para a solução exemplar deste caso, que a Polícia Federal pode e deve contribuir para a responsabilização de todos os envolvidos, independentemente de quem sejam ou de que cargos ocupem, mas reivindicamos que o caso seja mantido sob a responsabilidade das

instituições estaduais e não seja federalizado.

Não podemos deixar de manifestar que o atual contexto político do país ampliou nossas preocupações. Ficamos estarrecidos/as com o pronunciamento e as notícias que mostram que as interferências antirrepublicanas do sr. Presidente da República nos cargos de chefia da Polícia Federal, denunciadas pelo então Ministro da Justiça Sergio Moro, foram também motivadas pelo

interesse da Presidência no caso Marielle e Anderson. O próprio Presidente admitiu ter solicitado informações sobre o episódio do “porteiro”:

“Não são verdadeiras as informações que eu desejava saber sobre investigações em andamento. Jamais o procurei para saber de investigações já realizadas, a não ser aquelas sobre o porteiro, o Adélio e meu filho zero quatro”.

“Bolsonaro admitiu que recorreu à PF em pelo menos três oportunidades, uma delas para provar que não havia nenhum vínculo entre a família dele e a do ex-policial militar Ronnie Lessa, suspeito de ter feito os disparos que mataram a vereadora Marielle Franco, em março de 2018”.

“Sugeri a troca de dois superintendentes, entre 27. O do Rio, a questão do porteiro. A questão do meu ilho, 04, o Renan, que agora tem 20, 21 anos de idade. Quando, no clamor da questão do porteiro, do caso Adélio, que os dois ex-policiais teriam ido falar comigo, também apareceu que o meu filho 04 teria namorado a filha desse ex-sargento.”

Senhoras e Senhores Ministros, nesse cenário de incertezas e denúncias graves de interferência na Polícia Federal, nossas famílias não podem aceitar que as investigações dos assassinatos de Marielle e Anderson sejam federalizadas. Entendemos que a federalização, neste momento, é um caminho muito mais próximo da impunidade que da conclusão isenta das investigações. Esperamos que todas as instituições brasileiras responsáveis pela realização da justiça atuem com o compromisso de, com profundidade e isenção, elucidar o envolvimento de toda e qualquer pessoa que possa ter algum tipo de relação com as mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Agatha Reis, Alessandra Matias Rodrigues Gomes, Anielle Franco, Antonio Francisco da Silva Neto, Arthur Arnaus Reis Matias – representado por Agatha Reis, Luyara Franco, Marinete da Silva e Monica Benicio