Favelas do Rio de Janeiro contra violência policial. Por Helder C. Martins

Atualizado em 24 de maio de 2019 às 16:12

PUBLICADO NO EXPRESSO

POR HELDER C. MARTINS

Sob o lema “Parem de nos matar!”, os moradores das favelas do Rio de Janeiro vão sair à rua no domingo em protesto contra a violência policial, que causa cerca de cinco mortes por dia desde o início do ano. Por coincidência, estão marcadas para o mesmo dia manifestações de apoio ao Presidente Jair Bolsonaro.

“Só nos primeiros quatro meses do ano morreram 558 pessoas em resultado da intervenção da polícia e do exército. Hoje, serão mais de 600 os mortos”, diz ao Expresso Bárbara Nascimento, do coletivo Favela no Feminino e porta-voz da manifestação convocada pelas lideranças das favelas Babilónia, Rocinha, Alemão, Presidência, Chapéu-Mangueira e Baixada Fluminense, entre mais de 40 movimentos sociais

A professora de Português e moradora no Vidigal, na zona sul do Rio, comenta assim os números divulgados esta terça-feira pelo Instituto de Segurança Pública, que dão conta de um aumento de 19% nas mortes em relação a igual período de 2018. Os dados representam o maior crescimento em 21 anos de estatísticas.

“Nas operações policiais morrem bandidos, mas há sobretudo vítimas inocentes. Independentemente do envolvimento da pessoa, não há pena de morte no Brasil. Não se pode matar”, salienta a ativista. “É muito grave que as operações policiais ocorram, sobretudo, em horário escolar, quando as crianças vão para a escola, à hora do almoço e ao fim do dia, quando saem das aulas”, diz.

A violência policial aumentou com a ocupação militar do Rio de Janeiro — ainda decidida pelo ex-Presidente Michel Temer — e agravou-se com a entrada em funções do governador Wilson Witzel, do Partido Social Cristão, que apoiou a eleição de Bolsonaro. “A política das polícias civil e militar já era de atirar primeiro e perguntar depois. A situação piorou com a carta branca para matar dada pelo Presidente Bolsonaro e pelo governador”, afirma André Constantine, do coletivo Favela Não Se Cala e também porta-voz da manifestação de domingo.

“O governador Witzel participou há duas semanas numa operação de helicóptero com os atiradores especiais da polícia civil [CORE]. Witzel foi filmado a instigar os snipers a atirar a eito sobre uma favela de Angra dos Reis”, acrescentou o também ex-presidente da associação de moradores do Morro da Babilónia.

EXECUÇÕES SUMÁRIAS

“As mortes resultam sobretudo das operações dos polícias e militares nas favelas, mas também há causas mais obscuras”, acrescentou Bárbara Nascimento. Como exemplo menciona o ataque da Polícia Militar, em abril, a um carro onde seguia uma família negra que ia para um batizado. “Foi um ato de guerra. Mesmo depois de o condutor, o músico Evaldo Rosa, se ter identificado, os polícias continuaram a atirar”, afirma. O automóvel, alegadamente confundido com o de um traficante, foi atingido por 83 balas. O músico e um catador de papelão que tentou defendê-lo foram mortos.

A deputada federal Talíria Petrone, eleita pelo Partido Socia­lismo e Liberdade (PSOL, da vereadora assassinada Marielle Franco), apresentou esta terça-feira junto do Alto Comissaria­do das Nações Unidas para os Direitos Humanos novas queixas contra o governador do Rio de Janeiro sobre execuções sumárias e discriminação racial. A atuação de Witzel — ex-fuzileiro ligado aos evangélicos da Assembleia de Deus — está a ser investigada pela Procuradoria-Geral da República.

A “carta branca” para matar tem precedentes no próprio protocolo da polícia, o “auto de resistência”, que permite atirar a matar caso o agente considere que a sua vida está em risco, lembra Bárbara Nascimento. E é agravada, segundo a ativista, com a figura de “surpresa e violenta emoção” que consta do pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça, o juiz Sérgio Moro.

“A ideia de mobilizar mais favelas para fazer uma grande manifestação surgiu após a morte de William Mendonça (Nera) quando ia buscar o filho à escola, no dia 22 de abril. Porque as mortes não acontecem só no Vidigal”, explica Bárbara Nascimento.

“#ParemDeNosMatar não é uma manifestação contra o tiro que sai do fuzil. Há outras formas de matar o favelado: falta de creche, de investimento na escola, de saneamento básico. A reforma da Previdência é também uma forma de nos matar”, salienta André Constantine, para quem a violência do Estado é cometida contra “o preto, o pobre e o favelado”. A Rocinha tem o maior índice de tuberculose da América Latina.

A ocupação militar do Rio já custou mais de mil milhões de reais (cerca de 220 milhões de euros). “Já imaginou o que se poderia fazer com esse dinheiro? Investir em creches, escolas, distribuição de renda. A violência não se combate com violência, mas com desenvolvimento”, diz Constantine, que salienta que a organização também pretende mobilizar o apoio da classe média. Cerca de 1,4 milhões de pessoas, o equivalente a 23% da população do Rio de Janeiro, vivem em favelas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Sem maioria parlamentar e acossado pelo avançar das investigações de corrupção contra o seu filho Flávio, o Presidente Jair Bolsonaro lançou-se, nas duas últimas semanas, em violenta guerrilha contra a elite política e o poder judiciário, sobretudo os juízes do Supremo Tribunal Federal.

DESAGRAVO A BOLSONARO

Segundo a edição brasileira do jornal “El País”, 305 deputados de 21 partidos dizem-se independentes, enquanto 134 de seis partidos são da oposição. A bancada do Governo tem apenas 54 deputados. Esta situação bloqueia todas as inicia­tivas legislativas do Executivo, pondo em risco a reforma da Previdência ou o pacote anticrime de Moro. Bolsonaro começou por salientar a “ingovernabilidade” do país, causada pelos partidos do “centrão”, e atacou a elite política e judicial.

O chefe de Estado, empossado em janeiro, deu o mote, e os seus seguidores mais fiéis resolveram convocar para este domingo manifestações para lhe exprimir apoio em cerca de 50 cidades brasileiras. Uma espécie de desagravo face às grandes manifestações da semana passada contra o corte de 30% das verbas para a educação. E também uma tomada de posição face à jornada de protesto contra Bolsonaro marcada pelos estudantes para a próxima quinta-feira, dia 30.

A imprensa brasileira não tem certezas sobre os verdadeiros organizadores da manifestação nem sabe se Bolsonaro comparecerá. “El País” informa, por exemplo, que dentro do próprio PSOL existem fações que não participam, e o mesmo acontece com grupos de direita, como o Movimento Brasil Livre ou o Vem Pra Rua.

Bárbara Nascimento e André Constantine salientam que é “pura coincidência” haver também uma manifestação de apoio a Bolsonaro convocada para domingo. “Nós marcámos antes. Vamos manifestar-nos pela defesa da vida e não contra Bolsonaro”, diz Bárbara. André Constantine não espera que haja confrontos, pois o ato de apoio ao Presidente é uma concentração no Posto 5 de Copacabana a partir das 14h locais (menos quatro horas do que em Portugal), enquanto a manifestação das favelas ocorre entre as 10h e as 13h no Posto 8 de Ipanema, separados por alguns quilómetros.