Fernando Henrique Cardoso é corresponsável pela “escolha trágica” que resultou em Bolsonaro. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 7 de junho de 2020 às 8:43
Fernando Henrique Cardoso indo votar. Foto: Reprodução/Twitter

Com artigo publicado simultaneamente em dois jornais da velha imprensa, O Estadão e O Globo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se tornou uma espécie de porta-voz do pensamento de um setor da elite brasileira.

Como mostraram seu governo e as alianças que fez, FHC é basicamente um liberal, mas não se lhe nega a importância como acadêmico.

No artigo que publica neste domingo, mostra, na forma, seu alinhamento às ideias de Max Weber, pai da moderna ciência social e da ciência política.

No entanto, no conteúdo, continua com análise equivocada do que foram os governos de Lula e Dilma, ao dizer, sem citá-los, que fez mal ao país o discurso do “nós contra eles”.

Tentar comparar esse discurso com as ações de ódio de Jair Bolsonaro é desonestidade intelectual. Lula falava do nós contra eles para lembrar o compromisso com os mais pobres e da existência de uma elite atrasada no Brasil.

Mas o ex-presidente petista nunca ameaçou as instituições republicanas. Pelo contrário, as fortaleceu, diferentemente do que fez FHC, que, por exemplo, durante praticamente todo seu governo, nomeou para a Procuradoria Geral da República um homem que ficou conhecido como “engavetador-geral da república”.

O avanço em Fernando Henrique Cardoso é que ele já considera que a eleição de Bolsonaro foi uma “escolha trágica”. Ele teria votado em Bolsonaro?

Pelo que disse em uma palestra, não. Nem em Bolsonaro, nem em Fernando Haddad. Como compareceu às urnas, conclui-se que votou nulo.

FHC é, portanto, corresponsável pela escolha trágica do povo brasileiro. Não só porque desperdiçou o voto em que a escolha não era difícil. Tratava-se do embate entre barbárie e civilização.

É corresponsável também porque, tendo conhecimento suficiente para diferenciar a extrema direita da centro-esquerda representada pelo PT e Fernando Haddad, preferiu se manter em silêncio.

Na última frase de seu artigo, há uma ambiguidade reveladora do que talvez seja o seu real pensamento. Ele fala sobre “escolha trágica” de quatro anos atrás. Está se referindo a um tempo futuro — 2022 — em que os brasileiros não deveriam não repetir o erro de eleger Bolsonaro.

Mas pode ser no tempo presente. A escolha trágica que ele e outros pensadores liberais fizeram quatro anos atrás foi apoiar, decidida e entusiasticamente, o golpe contra Dilma Rousseff.

Segue o artigo de Fernando Henrique Cardoso:

Os tempos modernos caracterizam-se pela racionalização crescente, dizem os cientistas sociais. Se é verdade que nas culturas mais simples as crenças ditavam o que se devia fazer, com a complexidade do mundo contemporâneo, sobretudo pós-industrialização, a ciência substituiu as crenças. Se isso não vale para o transcendental, devia valer como baliza para as decisões, em especial as que implicam responsabilidade pública.

A ciência serve de guia para recomendar o provado, não elimina a necessidade de juízo político e moral sobre decisões a tomar. Dilemas difíceis chegam em situações de grande incerteza, como agora, pois não só o futuro parece indefinido, mas o presente se mostra volátil. Nestas horas é que mais se requerem lideranças para responder a desafios que exigem soluções complexas. É tarefa de todos ajudar nos resultados a partir do que se alcançou com o conhecimento. Mas os rumos são de responsabilidade moral dos que lideram. Cabe a eles decidir com base no conhecimento, pensando no que é bom ou mau para as pessoas.

Comentaristas repetem que enfrentamos uma “tempestade perfeita”. Chove e venta copiosamente: o coronavírus é pandêmico, a economia mundial está capenga, para não dizer paralisada ou regredindo, e em muitos países os donos do poder creem em mitos – que não são como os dos primitivos, aos quais não havia saber que se contrapusesse.

Assustados com a tempestade, os que, além de crer neles, pensam encarnar mitos, assumem ares de valentia. Na verdade, receiam que sua força se esvaia no confronto com a realidade, que não compreendem. Buscam culpados e inimigos, em vez de diálogo e convergência para atravessar o temporal com o menor dano possível para a economia e as pessoas, sobretudo as do andar de baixo.

Os que mandam nem sempre entendem os sinais de outros setores da sociedade. Desde que inventaram o “nós” contra “eles”, o adversário virou inimigo. E com inimigo não se conversa, se destrói. A menos que se renda e, ajoelhado, repudie suas ideias “subversivas”, que corroem a “ordem”. Não foi o atual governo que nos enredou e se amarrou nessa disjuntiva sinistra, mas a responsabilidade por sua solução é também de quem nos governa.

Em nosso país, com uma tempestade perfeita, o “nós” contra “eles” é criminoso. A vítima é a estabilidade da democracia, conquista civilizatória que nos tem permitido resolver os conflitos políticos de modo pacífico. Quem a põe em xeque ou silencia ante vozes autoritárias não é conservador, é atrasado, tem teias de aranha na alma. É promotor da instabilidade e conivente com o retrocesso civilizatório. Alguns são cultores da violência, do fanatismo e da ignorância. Subversivos são os que assim procedem, não quem ergue a voz para preservar o patrimônio comum de todos os brasileiros: a democracia que construímos.

Esta consideração alcança todos, mulheres e homens, civis e militares, conservadores, liberais ou progressistas. Só os reacionários, que têm no atraso sua bússola, não veem a distinção entre inimigos e adversários. Estes podem ter visões e objetivos diferentes dos que prevalecem nos que mandam, mas, se respeitadas as decisões da maioria, as leis e a Constituição, a diversidade, a diferença, fazem parte do jogo da democracia. Quando se substitui esta noção pela distinção entre “bons” e “maus” como se houvesse uma guerra permanente, começa-se por querer eliminar os “inimigos” e se termina por matar a democracia.

São tempos incertos os que vivemos. Neles a liderança deve apelar à racionalidade, ao bom senso, ao sentimento de solidariedade e de unidade nacional, admitir que não há caminhos fáceis nem soluções mágicas, e o País deve buscá-los de braços dados. O Brasil tem vulnerabilidades, como os grandes aglomerados urbanos onde milhões vivem do trabalho informal em moradias precárias. Sem falar dos desempregados e dos que perderam condições de se empregar. Tem limitações fiscais, que podem e devem ser flexibilizadas num momento de emergência social e econômica, mas não podem ser desconsideradas. E tem ativos como o SUS, instituições de pesquisa científica como a Fiocruz, universidades como a USP e outras, epidemiologistas de categoria internacional, militares e funcionários devotados ao serviço público, uma sociedade civil ativa, governadores e prefeitos que arregaçaram as mangas para enfrentar o desafio, uma imprensa atenta e instituições públicas de controle a zelar pelo bem comum, etc.

O que nos tem faltado é quem inspire, em vez de ódio e rancor, confiança em nós mesmos. Esta requer serenidade de quem busca despertá-la nos compatriotas; exige compostura, capacidade de convencer pelas ideias, e não pela ameaça.

O Brasil já contou com políticas e políticos que despertavam confiança. Convivi com Tancredo Neves, homem de fala mansa, mas de valores firmes. Foi um político de diálogo, atento à necessidade de buscar denominadores comuns em momentos críticos. E com Ulysses Guimarães, que sabia aliar ao diálogo a firmeza, quando necessário. E assim outros.

Que sua lembrança nos inspire a fazer frente aos arreganhos autoritários com firmeza e serenidade. E novos líderes encarnem o espírito enérgico e conciliador que marcou boa parte de nossa liderança, para em 2022 não se repetir a escolha trágica de quatro anos atrás.