Ferréz sobre governo Bolsonaro: ‘Cultura é censurada pelo discurso do medo. É a paz pelo terror’

Atualizado em 20 de outubro de 2019 às 15:31
Ferréz. Foto: RBA

Publicado originalmente na Rede Brasil Atual (RBA)

POR TIAGO PEREIRA

O romancista e ativista cultural Ferréz não quer abordar o atual momento político do país em sua obra. Apesar disso, em sua avaliação, a cultura do medo, a pauta moralista e a naturalização da violência começam a prejudicar a expansão da cultura periférica e cercear artistas, que deixam de expressar sua opinião e têm apresentações canceladas. “Quando a gente vai falar com algum rapper ou artista da quebrada, ele tem mais medo; não fala tudo que pensa. Eu tive uma palestra cancelada, na zona leste, por causa disso. Queriam que eu não falasse sobre alguns assuntos, mas um ‘Ferréz light’ não existe. A gente vai para outro estado (se apresentar) e pedem a mesma coisa. Não sabemos o que fazer, daqui a pouco vamos ficar dentro de casa”, lamenta o escritor.

Classificando a censura como “a paz através do terror”, Ferréz diz que não precisa ter uma ditadura para que as pessoas deixem de se expressar, pois o medo fala mais alto. O valor da fala no debate, que expandiu na periferia com os saraus e outras iniciativas culturais, refluiu.

“Se o cara quer fazer um teatro na quebrada e tocar num tema sexual, não pode. Se quer falar sobre a igreja, tem resistência. Então, as pessoas, a partir do subconsciente, tiram de pauta isso. Você não toca no assunto para não ser cerceado. Não precisa ter uma ditadura. A ditadura é para o corpo, a mente das pessoas está presa, elas abrem mão dos direitos. Quando falamos sobre democracia em colapso é isso, as pessoas já cederam no debate”, afirma.

Durante sua fala na mesa”Comunicação e Hegemonia Cultural”, nesta quinta-feira (17), no seminário Democracia em Colapso?, promovido pela editora Boitempo e pelo Sesc, ele afirmou que a periferia se desiludiu com a política e, apesar de insatisfeita com o governo Bolsonaro, vai demorar para se levantar. O evento terminou ontem (19).

“As pessoas estão apáticas, paradas. Não tem reação”, relata ele, que cita como exemplo o assassinato de Ágatha Félix no Rio de Janeiro. “A morte dela não tocou. As pessoas estão seguindo só a vida delas. Quem fica tocada é a classe média, os artistas e intelectuais, que olham a situação por outro prisma, mas a população da periferia quer viver a vida”, diz.

Entretanto, esse clima de conformismo muda quando o pão começar a faltar para o filho do favelado, contrapõe. “A pessoa da periferia deixa de comer, compra carne a prestação. Chegando nesse nível, a indignação cresce, quando a política pega no prato. Isso vai acontecer porque o governo não fala de emprego e a tendência é o povo se indignar”, alerta.

Arte

Ferréz está escrevendo um novo livro, com cerca de 30 personagens. Apesar dos tempos atuais mudarem a forma com que seu trabalho é recebido pela população, ele evita colocar o cenário conservador atual dentro da obra. “O romance que estou fazendo é atemporal. Tem um personagem que quer entrar no condomínio, mas não mexe no momento político, porque é muito sujo e não merece ser eternizado”, afirma.

A internet se tornou em parte um empecilho para levar a arte aos jovens, segundo Ferréz. Numa espécie de anestesiamento, fica difícil fazer um livro concorrer com o videogame. “Não dá para eu passar um conto em um minuto, preciso pegar a mente dele, ao contrário do imediatismo da internet”, lamenta.

O escritor chama a atenção para a presença de canais do YouTube moldando o perfil das pessoas, principalmente da juventude. “Criou-se o revolucionário de direita. O cara vira contra a Globo, anda vestido de exército, e a molecada segue. Tem canais de videogame na internet que são de direita e ninguém percebe.”