Filme da Lava Jato mostra como procuradores, juízes e delegados vivem a realidade como ficção, diz professor da UERJ

Atualizado em 9 de setembro de 2017 às 8:21
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Publicado na Rede Brasil Atual.

“No campo da democracia material, o Poder Judiciário que eu penso é aquele que tem a capacidade de reconhecer os direitos de todas as pessoas e principalmente dos segmentos da nossa população mais vulneráveis, mais invisibilizados, que necessitam desse reconhecimento de direitos e de uma atuação concreta à sua implementação para que as pessoas possam ser incorporadas na sociedade a um ambiente em que vivam com dignidade.”

Esse seria o papel do Judiciário e do sistema de justiça como um todo em um regime democrático que fosse além do seu aspecto formal, de acordo com o  professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Geraldo Prado. Para ele, o Judiciário não pode atuar na área criminal tendo como foco a repressão, já que “há um enorme conjunto de condutas que são pretexto para o castigo de pessoas e não das próprias condutas”.

Prado fala a respeito da necessidade de magistrados e outros atores do processo penal controlarem seus sentimentos em casos concretos para garantir o equilíbrio necessário a uma sentença justa. “Se, ao contrário, esse juiz não tem isso, não consegue, pretende ou deseja suspender o seu juízo, sente aquela imputação de uma acusação como um ato que lhe causa nojo, ojeriza, ele não está fazendo a passagem do juvenil para o adulto. Está mais envolvido no sentimento da emoção do que em um sentimento articulado à razão que é condição de julgamento”, afirma. “As sociedades totalitárias não permitem que pensamentos diferentes convivam, são sociedades infantis, porque o pensamento infantil é um pouco isso, a birra, a pirraça da criança diante do diferente, do que não é a sua compreensão de mundo.”

Ao analisar a ideia de se produzir um filme a respeito da Operação Lava Jato, Prado alerta para o caráter simbólico da obra no contexto atual. “Esse filme é emblemático porque rompe com essa distinção entre realidade e ficção e, ao fazer isso, com foco em figuras institucionalmente importantes para a democracia como procuradores da República, juízes e delegados de polícia, nos mostra que algumas dessas pessoas, infelizmente, estão vivendo nesse mundo ficcional. Estão vivendo a realidade como se ficção fosse. Isso explica bastante um certo desligamento, uma certa inconsequência na hora de agir.”

A entrevista abaixo foi concedida em meio à realização do 23º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo Ibccrim.

O senhor escreveu um artigo com o título “Imparcialidade do juiz é critério para medir maturidade democrática de uma sociedade”, em fevereiro deste ano, analisando algumas posturas do juiz Sergio Moro. Se levarmos em conta esse critério proposto, qual o grau de democracia vivido pelo Brasil hoje?

Normalmente somos levados a crer que a democracia é um regime político associado à periodicidade das escolhas dos governantes e dos legisladores, incluindo a possibilidade de a oposição se tornar situação, muito embora há bastante tempo outro conceito de democracia mais consistente tem buscado ocupar um espaço nas mentalidades da nossa vida contemporânea. Que conceito é esse? O de uma democracia material que se oriente para o futuro e para assegurar à totalidade das pessoas acesso aos bens da vida que permitam que todas elas vivam com dignidade. O conceito de democracia com o qual eu trabalho não é meramente formal. Em relação ao Poder Judiciário, o regular funcionamento das instituições judiciárias, a previsão dos tribunais, dos métodos de investidura dos magistrados que respeitem as regras, concursos públicos para os juízes, ascensão para os tribunais, a escolha política para os tribunais superiores, tudo isso está no campo da democracia formal. No campo da democracia material, o Poder Judiciário que eu penso é aquele que tem a capacidade de reconhecer os direitos de todas as pessoas e principalmente dos segmentos da nossa população mais vulneráveis, mais invisibilizados, que necessitam desse reconhecimento de direitos e de uma atuação concreta à sua implementação para que as pessoas possam ser incorporadas na sociedade a um ambiente em que vivam com dignidade.

Separadas as coisas, se pensarmos a democracia material, ela não pode ter entre suas instituições um Poder Judiciário que atua na área criminal focado na repressão, na punição. Por que? Porque historicamente nós acompanhamos a trajetória das práticas punitivas e sabemos que, se há entre os comportamentos puníveis atos realmente reprováveis como o homicídio e a violência contra a liberdade sexual, por exemplo, também há um enorme conjunto de condutas que são pretexto para o castigo de pessoas e não das próprias condutas. São condutas que aparecem nas leis penais como uma referência para poder consumar um sistema que, como foi dito no Seminário Internacional, quase atualiza o modelo de escravidão que as sociedades ocidentais sustentaram por muito tempo.

O Poder Judiciário não pode ser um instrumento de perpetuação de desigualdades sociais ainda que formalmente atue para castigar condutas criminosas. Ele tem uma espécie de justificativa, legitimação, o juiz criminal é aquele que vai sentenciar e condenar alguém que, segundo a sua ótica, praticou um crime, mas quando nos afastamos daquele caso singular para verificar o funcionamento do sistema criminal como algo mais amplo, vamos observar que a exigência de provas para condenar em determinados casos é muito menor do que em outros. E essa diferença existe porque não se está reprovando o ato em si, mas determinados segmentos da população. Um Judiciário democrático tem que ser um árbitro que age de maneira escrupulosa e rigorosa.

E se cria uma situação de seletividade penal…

O Ministério Público é essencial não apenas ao Estado brasileiro, mas à democracia, e é muito difícil a sua missão porque quando as pessoas batem às portas da polícia ou às suas diretamente levando casos e a sua condição de vítima e seu sofrimento, o humano que está por trás de cada promotor e promotora de Justiça pode fazer com que muitas reações sejam emocionais ou tomadas a partir de preconceitos e superficialidades. Por mais qualificado que seja o procurador da República ou o promotor de Justiça, ele vai lidar com um espaço de emoção em que pode eventualmente ultrapassar os limites legais. A história mostra que isso acontece e o Judiciário democrático tem como função controlar o abuso de poder, exigindo provas produzidas pela acusação com muita qualidade de convencimento para que, em um processo no qual o defensor vai poder contrapor e questionar essas provas, se possa condenar eventualmente alguém, com esta condenação tendo legitimidade política para além da legitimidade política formal.

Isso só pode acontecer se o juiz for imparcial e essa ideia de imparcialidade que menciono e a qual você refere no contexto do artigo que escrevi é a imparcialidade de um juiz que não se investe da função de perseguidor da corrupção e das práticas penais, de parceiro e companheiro do Ministério Público e da polícia nas sanções repressivas. Esse juiz tem que ter uma distância desses sujeitos processuais para poder se sentir absolutamente livre e cumprir uma função de limitação desse poder. A imparcialidade nesse contexto é alcançada com o que chamei de maturidade, com algo do comportamento ideal adulto que é suspender provisoriamente seus juízos pessoais.

Esse “comportamento adulto” mede a maturidade da sociedade e mostra que temos a condição de dispor de juízes que vão controlar os seus próprios sentimentos em casos concretos para permitir um desenvolvimento de atividades de acusação e de defesas equilibradas, pressupostos de uma sentença justa. Se, ao contrário, esse juiz não tem isso, não consegue, pretende ou deseja suspender o seu juízo, sente aquela imputação de uma acusação como um ato que lhe causa nojo, ojeriza, ele não está fazendo a passagem do juvenil para o adulto. Está mais envolvido no sentimento da emoção do que em um sentimento articulado à razão que é condição de julgamento. As sociedades totalitárias não permitem que pensamentos diferentes convivam, são sociedades infantis, porque o pensamento infantil é um pouco isso, a birra, a pirraça da criança diante do diferente, do que não é a sua compreensão de mundo. O pensamento adulto compreende que existe o pensamento do próprio indivíduo e o do outro, que vão conviver ali.

Nesse aspecto da democracia material e sua relação com o Poder Judiciário democrático, tivemos a estreia do filme Polícia Federal – A Lei é para Todos, baseado na Lava Jato, que pelo título passa a ideia de que a seletividade penal, que existe de fato, acabou por conta dessa operação. O quão simplista é essa ideia e também aproveitando o gancho desse comportamento infanto-juvenil que o senhor descreve, é possível identificar aspectos disso nessa operação?

Falo com muita tranquilidade sobre essa questão do filme porque no início dos anos 2000 recebi um convite de uma importante diretora de cinema brasileiro, Maria Augusta Ramos, para participar de um documentário, juntamente com outros juízes, que resultou no filme Justiça. Foi um documentário premiado mundialmente, 100 horas gravadas que se transformaram em um filme de 100 minutos, e uma das virtudes do documentário foi o fato de ele ter levado ao fechamento de uma unidade prisional no Rio de Janeiro que era uma senzala piorada – se é que seja possível piorar uma senzala…

Porque começo a responder sua pergunta por aí? Para dizer que o mundo de hoje é o mundo da imagem, da palavra, das novas tecnologias de comunicação e informação, do tempo instantâneo, e ninguém nega isso. O grande problema é que, se antes havia uma divisão muito clara entre ficção e realidade, agora ela tende a desaparecer. Se você tem um perfil em uma rede social, evidentemente vai fazer uma seleção das informações que vão para ali, e se você não for uma pessoa com problemas psicológicos graves, a tendência é que sua seleção vá produzir uma imagem que lhe é favorável. A persona que você constrói nesse mundo virtual não vai corresponder, como qualquer personagem ou projeção, 100% ao que você é. Embora nem nós saibamos quem somos totalmente, ali é diferente, pois se trata de uma construção intencional. E essas redes sociais, ao permitirem essa constituição de personas, vão dissolvendo a diferença entre realidade e ficção porque não se constroem apenas personagens, mas enredos. A sua vida passa a ser uma produção de enredos. Daí para uma passagem quase direta à ficção é um passo.

Não assisti ao filme sobre a Lava Jato, seria leviandade minha falar dele, estou falando da ideia de levar uma operação policial-judicial para o cinema como se esse transplante pudesse ser feito de maneira automática. O filme e também a exposição em redes sociais dos atores importantes, particularmente do Ministério Público Federal, se colocando sobre outras questões, são movimentações que rompem a diferença entre realidade e ficção.

Quando se participa de um documentário, e a pessoa responsável é boa, vai ficar muito tempo com a pessoa ali e em determinado momento a câmera desaparece, e o que você fazia normalmente continua fazendo. O diretor é dono da história, dono do enredo, a pessoa está sendo capturada no seu comportamento e nas suas ações, e o produto final é ele, diretor, que vai estabelecer. Quando saímos dessa situação de documentário para outra em que realidade e a ficção não são distinguíveis, o dono do enredo passa a ser o personagem, o procurador da República, o juiz etc.

Se nós pensarmos nas nossas brincadeiras de criança, elas brincam de luta, de matar umas às outras, e continuam brincando. Na ficção infantil não existem resultados irreversíveis, justamente porque é uma ficção. Na vida como ela é, em que as instituições funcionam, em que as pessoas atuam, em que uma decisão de prisão vai ser cumprida e uma pessoa vai ser encarcerada, não existe ressuscitar depois da morte como no jogo infantil. O adulto lida com consequências de seus atos, muitas das quais irreversíveis. Ainda que um tribunal reconheça que uma prisão de 30 dias é ilegal e relaxe essa prisão, não há como voltar no tempo e recuperar aqueles 30 dias. Lidamos com a irreversibilidade.

A maturidade, o estado adulto – e uso estado adulto e comportamento infantil como metáforas, não estou chamando ninguém de infantil ou adulto – e esse estado infanto-juvenil se distinguem porque no estado adulto tenho consciência da irreversibilidade de determinadas condutas e no estado infantil essa consciência desaparece. O mal que ficcionalmente uma criança faz à outra em uma brincadeira não é um mal efetivo; um mal feito na vida adulta é efetivo, marca. Quando se dissolve a barreira entre realidade e ficção, o que tenho é a projeção desta concepção Infanto-juvenil para a vida adulta. Não é apenas que ela incorpora o personagem do herói, messiânico, redentor. Isso também acontece e vejo que muitas análises sobre este filme estão focadas neste aspecto mais individual das pessoas supostamente retratadas na ficção. Volto a dizer, não vi o filme, não posso saber se é assim, o que me preocupa não é estarem ou não retratadas, mas a pretensão de que a ficção retrate a realidade. Porque aí as pessoas passam a se mover na realidade para atingir objetivos da ficção. É aquele maniqueísmo infantil do bom e do mal, do certo e do errado, sendo que a vida é muito mais complexa, o humano é contraditório, as ações podem ser explicáveis ou nem mesmo o indivíduo que atuou consegue entender  porque agiu daquela forma, e as instituições existem para permitir que, por meio do processo, essas contradições aflorem, essas perplexidades surjam e que tentemos, como juízes e juízas humanos que somos, arbitrar esses conflitos errando menos.

Os recursos existem porque há uma premissa de que o erro é possível, as ações de revisão criminal existem porque os tribunais podem errar também. Estamos no plano do humano, do adulto, da realidade. Esse filme é emblemático porque rompe com essa distinção entre realidade e ficção e, ao fazer isso, com foco em figuras institucionalmente importantes para a democracia como procuradores da República, juízes e delegados de polícia, nos mostra que algumas dessas pessoas, infelizmente, estão vivendo nesse mundo ficcional. Estão vivendo a realidade como se ficção fosse. Isso explica bastante um certo desligamento, uma certa inconsequência na hora de agir. Denúncias visivelmente sem base ou excessivas – quando existe até base para a acusação, mas não da forma que ela está formulada – são apresentadas e sentenças são processadas com alguma consciência individual de que ali estamos deixando de lado as regras do processo para atender a esses fins maiores de combate à corrupção motivados por essa inspiração que não é tipicamente madura, e sim do plano da ficção, e não da realidade.

E agora estamos vendo essa controvérsia gerada pela declaração de um advogado na Espanha, que pode não ter base alguma e mesmos ser mentirosa, mas que lança suspeição sobre importantes atores da Operação Lava Jato que, na minha opinião, merecem ser criticados por muitas coisas, mas não consigo sinceramente acreditar minimamente que possam ter agido por interesses escusos, não conheço esse senhor da Espanha, que tipo de provas tem para fundamentar o que alega, embora ache muito improvável que consiga demonstrar isso, mas vamos pensar: se a barreira entre realidade e ficção é dissolvida, por que não acreditar nele? Como é perigoso vivermos em um plano infanto-juvenil da ausência de limites supostamente para atingir fins maiores, como isso pode se voltar contra nós mesmos…