Fogo no Borba Gato: não me incluam nessa euforia tik-tokiana de 15 segundos. Por Alceu Castilho

Atualizado em 27 de julho de 2021 às 7:20
O Borba Gato queimando

Publicado no Facebook de Alceu Castilho, jornalista

No futuro todo mundo será revolucionário por 15 segundos. Desde que se grave o ato supostamente revolucionário.

O ato midiático: com fogo, fumaça, imagens bem editadinhas do fogo e da fumaça e do vilão petrificado da vez, perfil transadinho no Instagram.

O movimento que reivindica o ato em São Paulo (esse que desviou o foco das manifestações organizadas contra um governo genocida) intitula-se Revolução Periférica.

E aí vejo que foi criado agora e já tem 35 mil seguidores no Instagram. Opa, 36 mil. Opa, 40 mil. Mas esperem aí: estamos seguindo exatamente quem?

Quem essas pessoas representam? Que tipo de revolução defendem? São comunistas (quero crer que não sejam comunistas anônimos), anarquistas?

Ou são infiltrados e foi uma ação da direita? Eu não sei, absolutamente não sei.

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E, portanto, estamos a assistir o ocaso do que poderia ser um conjunto de lutas vertebradas, com matrizes teóricas, créditos, fontes corretas (Borba Gato não era exatamente um gentleman, mas a sucessão de disparidades históricas a seu respeito me impressionam…), reivindicações, próximos passos.

O que defende o tal movimento? Estaremos apoiando exatamente o quê? Ninguém cogita a hipótese de que isso possa ser uma espécie de Borba de Troia, que em nome do bandeirante (o monstro conveniente) estejamos dando apoio a algo que não sabemos de onde vem, em nome da revolução e da periferia?

Revolução o quê? Decolonizadora? Periferia qual? Contra quem?

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Enquanto isso, os atos realizados por dezenas ou centenas de organizações na Avenida Paulista e em centenas de cidades pelo país, exatamente no mesmo dia, perderam por nocaute a batalha midiática. Por quê? Por que exatamente esse fogo e esse furor nesse dia exato?

É em nome dos indígenas? Temos certeza disso? Borba Gato é mesmo o melhor exemplo histórico de caça aos indígenas? (Parece que não…) Quem serão os próximos? Quais serão os ganhos concretos desses atos?

Se for em nome dos indígenas, teremos um levante contra os fazendeiros (o agronegócio, a mineração) e os bancos e multinacionais que financiam a bancada ruralista?

(Fazendeiros financiavam as bandeiras, rotas de expansão de terras e de gado. Fica a dica.)

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A gente fala tanto em ingenuidade, mas em determinado momento tanta gente boa decide ser ingênua por 15 anos, na mesma medida em que se torna revolucionária por 15 segundos.

Desde que esses 15 segundos aplaquem nossa raiva histórica e nos faça sentir melhores, saciados, vingados. (Não sei por que me vem à cabeça um roteiro sensacional do Carl Barks, o Pato Donald Incendiário.)

Em nome de uma Boa Causa. Como se a Revolução Possível partisse do axioma de que Bandeirante Bom é Bandeirante Morto.

(Rolam uns bem vivos aí, querem os nomes?)

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E aí qualquer pessoa que, à esquerda, diga alguma coisa contra a estratégia (que não nos foi apresentada) passa a ser imediatamente pintada como defensora do Borba Gato ou da qualidade da estátua (se Julio Guerra não tivesse morrido talvez fosse incendiado…) ou defensora de vidraças.

Como se a quebra de vidraças ou o ato midiático em torno do Borba Gato fossem o Grande Heroísmo Possível. E não o marketing de valentões ocasionais.

Que tal se juntarem à Liga dos Camponeses Pobres, em Rondônia? Ali o bicho pega, sabem? Não se trata de juntar uns pneus, botar foto e bombar perfil revolucionário nas redes, ali os tais fazendeiros que continuam a atacar indígenas e camponeses reagem à bala! Ameaçam. Matam.

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Não me incluam nessa euforia tik-tokiana de 15 segundos. Temos um Brasil inteiro a construir — com riscos, com riscos para quem quer que dê sua cara e seu nome a tapa — e absolutamente não acredito em um grupo que não se identifique devidamente, de onde vem, que ideias defende, o que fará nos próximos 15 segundos dos próximos anos e décadas.

Não assino cheque em branco.E não me convencem os ataques prévios a quem quer que fique com a pulga atrás da orelha em relação a esse ato ou qualquer coisa espasmódica parecida. Tem muito amigo por aqui eufórico e afobado em torno do ato de ontem. (Analisem. Analisem. Analisem.)

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O mundo é desigual pra cacete. As violências são múltiplas. São organizadas, são financiadas pelo capital, são defendidas por gente muito bem armada e instalada no poder — de máfias assumidas a máfias não assumidas.

Mas aí vejo o tal Revolução Periférica perguntar em seu Instagram: “Você sabe quem foi Borba Gato?”

(Eu sei um pouco, Revolução Periférica. Foi um personagem complexo, fruto de um processo histórico complexo. Sei também que boa parte dos que estão entusiasmados com o ato não sabem exatamente quem foi Borba Gato ou seu sogro Fernão Dias Paes.)

Eu pergunto: quem é Revolução Periférica?

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A Revolução Periférica sabe quem promove as violências contra indígenas neste país, não nos séculos 17 e 18 (e não que não devamos saber), mas no século 21, sabe quais os projetos genocidas e ecocidas que estão rolando no Congresso?

Vai lutar contra eles?

Aviso: eles são milhares, dezenas de milhares de protagonistas, dos fazendeiros aos meios de comunicação. Passando pelo Congresso e cada órgão público deste país (prefeituras, Assembleias). Pelo capital, pelos banqueiros. Com jagunços, com polícia, com tudo.

Um sistema. Como tal, complexo. Vão botar fogo em tudo, em todos eles? (Em nome de quem?)

((Ou em suas estátuas, daqui a alguns séculos?))

Ou vão se informar melhor sobre os tentáculos da violência atual contra indígenas e camponeses e, nas periferias, contra os trinetos dos escravizados pelas bandeiras?

“Sim, vamos botar fogo, botar fogo é legal, vocês viram as imagens?”

Preparem-se: vai faltar pneu.