“Foi sordidez atrás de sordidez”, diz jornalista que organiza grupo que tomou calote dos Civitas na Abril. Por Zambarda

Atualizado em 21 de dezembro de 2018 às 16:58
Patrícia Zaidan ex-redatora-chefe da revista Cláudia. Foto: Reprodução/Facebook

A jornalista Patrícia Zaidan trabalhou quase 20 anos na Editora Abril e era redatora-chefe da revista Cláudia. É ela que organiza grupos de WhatsApp, a página no Facebook “Abril Com Fome” e o canal de YouTube “Vítimas da Abril”. Reunindo outros jornalistas, gráficos, distribuidores e outros demitidos pela empresa, ela pressiona os executivos que estão responsáveis pela recuperação judicial com total apoio das organizações sindicais que tomam providências sobre a situação de pessoas que ficaram com valores a receber e passam dificuldades.

A Família Civita se desfez da empresa que possui uma dívida de R$ 1,6 bilhão entregando ao advogado Fabio Carvalho, especialista em empresas com dificuldade financeiras. A venda tem o respaldo financeiro do banco BTG Pactual. Entre os investimentos de Carvalho estão as Lojas Leader e a Casa & Vídeo.

Patrícia encontrou-se com Marcos Haaland, da Alvarez & Marsal, que coordena a recuperação judicial da Abril para evitar sua falência. Ela deu uma entrevista ao DCM sobre seu trabalho expondo a história dos demitidos e cobrando a editora para ressarci-los após o calote na demissão, enquanto os Civita permanecem bilionários.

Diário do Centro do Mundo: O que será do futuro dos funcionários com a venda da Abril que agora sai da mão dos Civitas?

Patrícia Zaidan: Vamos avaliar em conjunto. As quatro categorias de empregados demitidos e os freelancers que tomaram o calote vão pensar juntos para definir os próximos passos que daremos. A venda está condicionada à aprovação do Cade e, embora até aqui as reportagens não mencionem, o juiz Paulo Furtado, da Segunda Vara de Falências e Recuperações Judiciais, também se manifestará. Pois qualquer negócio, qualquer transação relacionada a uma empresa em recuperação judicial, tem que ser informado à Justiça.

O dinheiro da venda se destina em primeiro lugar ao pagamento dos credores, com prioridade para os trabalhadores. E, pelo que entendo, os credores terão que dar um aval à negociação, pois, neste momento, a Abril não é uma companhia livre e desembaraçada. Ela tem sua dívida exposta publicamente conta com a proteção da Justiça para se reerguer. Em contrapartida tem que ouvir os credores. Conforme a lei, eles constroem com a empresa um plano de recuperação para ela.

Se o valor da venda foi, por exemplo, um real, Flávio Carvalho estará assumindo a dívida e o que restou da empresa, sem pagar nenhuma soma à família Civita, que se dará por satisfeita ao se livrar da encrenca toda. Nesse caso, Carvalho está comprando na bacia das almas; saneará o Grupo gastando o mínimo possível (e aí tentará esfolar ainda mais os trabalhadores a quem a Abril demitiu sem pagar), e passar a lucrar com ele depois.

É preciso ver em que bases o negócio está sendo fechado. Isto não está claro. Pode ser ainda que a dívida tenha ficado com os acionistas. Uma coisa é certa: não deixaremos de protestar e fazer nossas visitas aos pretensos “donos” do nosso destino. Vamos ao Carvalho dizer porque devemos receber tudo o que a Abril nos deve.

A empresa deve R$ 77 milhões segundo ela própria, quando conversamos com o presidente do Grupo, Marcos Haaland, por 45 minutos. Dissemos a ele, antecipadamente, que discordamos do Plano de Recuperação da Abril, que prevê um não-pagamento dos empregados. É uma proposta indecente e asquerosa.

DCM: Você e os funcionários já sabiam da venda? Que ela viria com a Recuperação Judicial?

PZ: Sim, sabíamos que a venda estava a caminho. Ontem, falamos muito sobre as transações com Haaland. Ele alegou que, desde o começo, tudo estava sendo tratado pelos dois interessados. A saber: Carvalho e Leal, da Natura. E que tudo seria finalizado no próximo mês de janeiro.

DCM: Como foi o processo da demissão? Quais condições eles deram?

PZ: No dia da demissão, o RH da Abril montou uma espécie de acampamento de urgência para poder atender todo mundo no dia 6 e no dia 7 de agosto. Foram demitidos, segundo os números da Abril, 804 funcionários. A soma conta gráficos, jornalistas, distribuidores, funcionários do setor administrativo. Além desses demitidos, também foram cortados os freelancers de fotografia, texto, reportagem e os chamados “freelas fixos”, sendo que esse último caso já contraria a lei, além de quem prestava serviços esporádicos para a Abril. Todos eles receberam calote mais ou menos nesses termos.

Esse acampamento foi construído para que todo mundo rapidamente assinasse suas demissões. Naquele momento não havia sido publicado o pedido de recuperação judicial da empresa. Portanto nós estávamos imaginando que seria uma demissão como outra qualquer já sabendo que eles estavam contrariando acordos e cortando em massa, sabendo que deveriam dialogar com o sindicato. O diálogo era necessário para melhores condição na saída dos funcionários, mantendo plano de saúde e outros benefícios e tornando todo o processo menos traumático.

O que se entendeu é que já havia naquela situação um enorme prejuízo pela Abril ter descumprido acordos, estar demitindo em massa e em condições menos favoráveis. Eles parcelaram naquele momento em até 10 vezes e prometiam incluir mais um salário. O salário adicional da folha do funcionário era pra compensar uma multa já prevista no contrato CLT por atraso na rescisão.

Como a Abril estava admitindo o parcelamento em 10 vezes, ela própria já assumia a multa. Era uma espécie de “compensação por estar parcelando os créditos”. O pessoal assinou, mas pensando em contestar posteriormente aquele parcelamento. Adicionamos uma cláusula discordando do parcelamento em 10 vezes.

Quando completou 10 dias dessa negociação, a Abril entrou com o pedido de recuperação judicial. O que a gente costuma avaliar quando falamos nesse assunto? A empresa fez tudo de maneira premeditada. Ao demitir os 804, ela já imaginava contar com a concordância do juiz para fazer esse pedido. Protocolado o pedido de recuperação judicial, ela se livrava da obrigação de pagar imeditamente os demitidos. Isso gerou um golpe terrível na vida dos empregados. Abril também demorou para liberar as chaves de entrada no FGTS para os funcionários sacarem o dinheiro, além do seguro-desemprego.

Num primeiro momento, as pessoas ficaram numa espécie de vácuo.

DCM: Num limbo, certo?

PZ: Sim. Foi uma sordidez atrás de outra sordidez. Alguns funcionários ficaram dias e dias até arrancar do RH essas informações e dar baixa na carteira de trabalho, que estava retida com eles. Foram violências inúmeras até que o golpe fatal viesse com a recuperação judicial.

DCM: A recuperação judicial surpreendeu vocês por interromper os pagamentos, certo?

PZ: Sim. Mesmo contextando o parcelamento, foi uma surpresa a entrada na recuperação judicial. Já ouvíamos lá dentro, antes das demissões em massa, que muitas revistas seriam fechadas. Que a empresa estava à venda e procurando comprador. Como a legislação de recuperação judicial é nova, de 2005, nós não conhecíamos os termos da lei. Foram dias de profunda angústia.

As pessoas envolvidas não sabiam o que esperar do futuro naquela situação.

DCM: A ideia do grupo de demitidos da Abril foi sua?

PZ: Tenho me dedicado permanentemente aos meus companheiros demitidos. Falo pelo menos com um representante de cada categoria dos demitidos da manhã até a noite. A minha situação é a mais cômoda. Eu estava há 19 anos na Abril. Estava em outra fase da vida.

O que eu tenho visto? Todo dia eu descubro uma história nova. Um novo drama e um novo colega que conta atrocidades que está sofrendo da Editora Abril sem o pagamento e sem o seu pagamento. Por isso eu tenho me esforçado para organizar essa resistência.

Então, desde o primeiro momento nós nos organizamos porque a gente percebeu que precisaria se proteger de algo que não sabíamos no que ia dar. Nós imediatamente fizemos uma reunião no Sindicato dos Jornalistas. Teve um comparecimento muito grande de profissionais, mesmo sabendo que a categoria é conhecida por não ser muito unida, por não se agrupar e nem se defender muito. “Jornalista nunca é notícia”. Isso é uma falácia e por conta disso jornalista se reúne pouco em sindicato, se sente superior a outros trabalhadores e sente uma certa vergonha de se defender.

Tem que acabar com essa bobagem. Jornalista é ser humano. Tem que comer todo dia. Tem que tomar café da manhã, almoçar e pagar conta. Justamente por isso, desde o começo, a gente propôs se juntar. Não só jornalistas, mas também categorias igualmente atingidas pelas demissões. Os gráficos foram os mais atingidos. Logo no primeiro momento juntamos eles e os distribuidores.

A Reforma Trabalhista foi defendida pelos meus patrões da Abril, apesar dos protestos internos. Como as demissões não foram homologadas no sindicato, a gente perdeu a visão do todo. Nós não sabíamos o total de demitidos por causa disso.

DCM: Vocês ficaram às cegas, então.

PZ: Esse número de 804 é baseado na matéria publicada na revista Veja, a principal da empresa. Pode ser que esse número seja maior. Nós falamos em mais de mil demitidos. Por que falamos isso? Porque a Abril vem praticando demissões desde o ano passado, parcelando as verbas rescisórias. São mais de 1200 demitidos nessa conta.

DCM: Vocês fizeram quatro vídeos no YouTube no canal “Vítimas da Abril”. Um cadeirante que dependia do plano de saúde da empresa, um gráfico que está lavando o banheiro pra sobreviver, um ex-funcionário que tem um filho doente e outro que passa por complicações de saúde. Vocês irão divulgar mais histórias?

PZ: Planejamos sim contar as histórias dessas pessoas e brigar pelo que é nosso direito diante do péssimo posicionamento da empresa, cujos ex-proprietários aparecem com uma fortuna de 10 bilhões no ranking da revista Forbes, replicado pela revista Exame da própria Abril. O jornalista Lourival S’Antana faz a captação das imagens, conduz as entrevistas, tira boas declarações dos demitidos

DCM: Como foi o protesto que vocês fizeram tentando evitar a distribuição da Veja?

PZ: Que fique claro: a gente não quer que a Abril quebre de forma alguma, até para repôr os empregos que ela cortou hoje. No entanto, com tantas pessoas passando necessidades urgentes, nós decidimos deitar na frente dos caminhões para atrasar a distribuição da publicação mais importante da editora, a Veja.

Atrasamos apenas por algumas horas, mas demos a nossa mensagem.

DCM: O que você acha de fotos da filha de Giancarlo Civita na Índia enquanto os funcionários ficam sem comida na mesa?

PZ: A filha de Gianca Civita tem liberdade de escolha, pode fazer o que bem entender: rezar, transar, chorar. No lugar dela, eu estaria chorando. Gianca é um dos piores patrões do Brasil, um péssimo empresário. Ostentar no Facebook fotos de sua busca espiritual, em vestes indianas, ou gozando em viagens caras também é um direito da moça. Mas fazer isso quando 1200 empregados e freelancers, explorados pelo pai dela, passam fome ou se sentem humilhados, traídos e roubados é complicado. Roubados, sim. Para onde foram os 77 milhões de reais que os empregados não receberam?

Quem está usufruindo deste dinheiro agora? Os filhos não respondem pelos erros do pai. Mas devem se compadecer das vítimas que ele faz. Os filhos espiritualizados, então, precisam defender essas vítimas.

Uma das demitidas que visitou ontem o presidente da Abril é Lícia Lima, ex-empregada da gráfica. Lícia disse a Haaland que sua filha adolescente estava com uma cirurgia de risco marcada, em que corrigiria um problema na coluna que pode deixá-la paraplégica. O convênio foi cancelado antes da hora, e a operação caiu no limbo. Lícia conta com a ajuda da igreja que frequenta para alimentar a mais velha e a caçula, de 4 anos, que é cadeirante.

Ela também explicou ao presidente da Abril que representava todos os colegas demitidos que estão enfrentando doenças e dificuldades semelhantes. Então, penso que a moça no spa indiano, com o sobrenome Civita, escolheu a hora errada para exibir sua imagem nas redes sociais.