Fundamentalismo e sectarismo não são monopólio de evangélicos, diz Gilberto Carvalho

Atualizado em 10 de setembro de 2020 às 9:19

PUBLICADO NO BRASIL DE FATO

Em entrevista concedida ao repórter Isaías Dalle e publicada na revista eletrônica Reconexão Periferias, edição de outubro, o ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo Dilma Rousseff (PT), Gilberto Carvalho, rebateu a ideia de que os fundamentalismos e sectarismos religiosos enfrentados hoje pelas forças progressistas venham apenas de setores evangélicos.

Segundo ele, as questões morais e dos costumes, exacerbadas por várias denominações religiosas, inclusive católicas, abriram “um fosso” entre a esquerda e parcela da população mais pobre que tem na igreja, muitas vezes, seu único ponto de apoio.

“Essa é uma questão muito dolorosa para nós [da esquerda], pois é entre a população mais pobre que existe uma parcela das pessoas hegemonizadas por esse tipo de prática religiosa, que eu considero fundamentalista e que cria essa contradição com o nosso projeto, com a política. (…) Não apenas setores evangélicos, mas também correntes católicas que têm a mesma prática. O fundamentalismo não é monopólio dos evangélicos. A Renovação Carismática tem mais ou menos a mesma prática e tem também o costume de estar sempre ao lado dos poderosos”, afirma.

Carvalho, que foi seminarista e se tornou o principal interlocutor dos governos Lula e Dilma com os movimentos religiosos, prega a retomada do diálogo pela base para reverter a situação.

“É um trabalho muito difícil, porque essa capa dogmática tende a nos afastar, e a abordagem da temática dos direitos humanos aparentemente nos coloca em atrito, mas se você tiver prudência e objetividade, o resultado pode ser muito interessante”, diz ele.

Para Carvalho, é improdutivo entrar em discussões com fiéis sobre a veracidade dos textos bíblicos – alguns deles usados para atacar a homossexualidade ou os direitos das mulheres, por exemplo.

“Não adianta chegar para um fiel e dizer que certos trechos não são verdadeiros, isso não levará a nada. O que é preciso é, com calma e respeito, chamar as pessoas ao bom-senso. Não entrar nessa disputa fundamentalista, e sim buscar pontos de acordo”.

Leia a entrevista:

Reconexão Periferias: Há setores religiosos da sociedade que são estimulados a fazer uma leitura estrita dos chamados textos sagrados. Numa interpretação estrita, aqueles que pensam diferente não estão apenas enganados, estão errados, sujeitos inclusive ao castigo divino. Se a política é a arte de conectar os diferentes, como pode ser feito o diálogo entre ela e a fé?

Gilberto Carvalho: Este é sem dúvida, na minha opinião, o principal desafio da política e da esquerda no Brasil hoje. Esse tema abriu um fosso entre nós e uma parte da população que sempre foi, digamos, a nossa predileta. Essa é uma questão muito dolorosa para nós, pois é entre a população mais pobre que existe uma parcela das pessoas hegemonizadas por esse tipo de prática religiosa, que eu considero fundamentalista e que cria essa contradição com o nosso projeto, com a política. Essa contradição se dá sobretudo nos temas de costumes, nos temas morais. A questão da homoafetividade, da união civil homoafetiva, o direito à interrupção da gravidez, temas dessa natureza. E vamos lembrar que não apenas setores evangélicos, mas também correntes católicas que têm a mesma prática. O fundamentalismo não é monopólio dos evangélicos. A Renovação Carismática tem mais ou menos a mesma prática e tem também o costume de estar sempre ao lado dos poderosos. Uma espécie de aliança obrigatória com o governo. Quero deixar bem claro que não se trata de um preconceito com os evangélicos. Mas é claro que na situação atual do Brasil, os evangélicos, e a bancada evangélica talvez seja o símbolo maior disso, as lideranças dessas igrejas têm um alinhamento político com o governo Bolsonaro. E de fato, essa ideia de que quem não faz parte do meu grupo precisa ser combatido ou convertido, é uma marca dessas igrejas, o que dificulta o diálogo. Mas temos feito um trabalho que começa a dar pequenos frutos, que é uma tentativa de diálogo. Temos conversado com as altas cúpulas, que têm expressão e influência política – até pelos favores que conquistaram, inclusive no nosso governo, diga-se de passagem, com concessões de comunicação, convênios etc – mas especialmente com a base, com os pastores e com os fiéis. Aí você pode demonstrar, com paciência, que ao contrário, os princípios que nós pregamos, nosso projeto, tem grande convergência com o espírito central do Evangelho e dos profetas, que é cuidar da viúva, do oprimido, dos pobres, daqueles que foram excluídos ou injustiçados. É um trabalho muito difícil, porque essa capa dogmática tende a nos afastar, e a abordagem da temática dos direitos humanos aparentemente nos coloca em atrito, mas antes você tiver prudência e objetividade, o resultado pode ser muito interessante. Os evangélicos crescem de forma exponencial no Brasil.

Há previsão de que até 2040 estejam empatados com o número de católicos no país.

De qualquer maneira, crescem muito entre os mais pobres, que, como eu disse, sempre foram os prediletos de nossa ação política.

Há trechos da Bíblia – eu cito aqui a Bíblia porque somos um país majoritariamente cristão – que condenam explicitamente a homossexualidade, por exemplo, ou o culto a imagens. Como tratar esses valores, esses dogmas?

Devemos sempre recordar que a Bíblia foi escrita há pelo menos dois mil anos, em outro contexto histórico e político. Jesus Cristo diz, por exemplo, em certa passagem, que “se tua mão direita te fizer pecar, corta-a e lança fora”. Se você quiser levar o texto bíblico ao pé da letra, será uma tarefa impossível. Ela foi escrita dentro de tradições culturais que já não são as mesmas de hoje. Imagine como será o mundo daqui a 300 anos. Imagine agora como foi há dois mil anos. É um absurdo querer fazer leitura literal da palavra. Mas não adianta chegar para um fiel e dizer que certos trechos não são verdadeiros, isso não levará a nada. O que é preciso é, com calma e respeito, chamar as pessoas ao bom-senso. Não entrar nessa disputa fundamentalista, e sim buscar pontos de acordo. Agora, é preciso destacar que essa leitura é induzida por grandes líderes que querem se aproximar dos vencedores para extrair benefícios e pregam o ódio à esquerda, a quem prega a igualdade. Isso não tem nada de bíblico. Isso é puro oportunismo para ter aliança com um tipo de governo que hoje existe no Brasil.

Existe uma ideia muito disseminada entre os protestantes de que a esquerda persegue religiosos. Cita-se muito a experiência soviética. A experiência brasileira tem sido diferente?

Olha, quero dizer que a direita católica tem essa mesma postura, esse mesmo preconceito. Há padres que defenderam voto em Bolsonaro para “acabar com os comunistas”. O sectarismo não é monopólio evangélico. Quero dizer o seguinte: desde a fundação, nosso partido foi alvo de muito preconceito e campanha contra por causa de nossa identificação com projetos socialistas do mundo todo. Diziam que íamos fechar igrejas, perverter as crianças. Com o passar do tempo, fomos amenizando isso. Porque o PT é um partido que, graças a Deus, nasceu muito diverso. Se você pesquisar, meu irmão, você verá que grande parte dos diretórios do PT foi fundada na casa paroquial, na igreja. Um contingente enorme de militantes foi despertado para a política pela fé. Havia uma forte ligação com a Teologia da Libertação, mas tínhamos também metodistas, presbiterianos, enfim. Até hoje temos importante lideranças que são praticantes da fé evangélica. Então, aprendemos e incorporamos muito disso. E esse processo culminou na eleição do Lula, que faz uma reforma do Código Civil que garantia a liberdade de culto. Em nossos governos, e nos oito anos de Lula especialmente, trabalhamos muito próximos das obras sociais das igrejas e essa relação foi se suavizando. Mas houve alguns percalços nessa relação, mas muito especialmente uma ação bem orquestrada pelo senhor Eduardo Cunha (deputado federal do MDB-RJ e ex-presidente da Câmara no segundo mandato de Dilma), que é um evangélico, não quero julgar a alma dele, mas movido por profundo senso de oportunismo, que articulou a bancada evangélica para o golpe, afirmando aos deputados que eles ganhariam mais com a queda da presidenta Dilma. E usou histórias como aquela cartilha do MEC (intitulada kit gay por setores da oposição) e outros incidentes, que não fazem o menor sentido, para promover uma campanha. Desde então, teve início uma devastadora campanha contra nós no interior das igrejas. Tudo o que havíamos acumulado nos anos anteriores, inclusive o reconhecimento, por parte dos pastores, de que a vida dos crentes havia melhorado, que até o dízimo das igrejas havia melhorado, foi sendo destruído por uma ação oportunista do senhor Eduardo Cunha junto à bancada evangélica, de modo que, na hora final, a bancada evangélica quase que unanimemente votou contra nós. O PRB, que era o partido ligado à Universal e à TV Record, votou contra, apesar do apelo que a presidenta Dilma fez ao Edir Macedo, que fora muito beneficiado por nossa política de comunicação, com concessões, anúncios. Foi um movimento deliberadamente político que foi aumentando esse fosso entre nós. Mas quero destacar aqui que temos um enorme campo de trabalho junto a essas igrejas. Hoje, nas periferias, quem cuida dos pobres são as igrejas evangélicas, quero registrar isso.

Além da pauta dos costumes, houve algum momento que marque essa ruptura da Universal e outras igrejas com o projeto do PT do ponto de vista econômico?

Não diria do ponto de vista econômico porque faltou dinheiro, nada disso. Foi um senso de oportunidade que mostrava para onde ia o rumo do poder. E volto a lembrar que há uma tendência, nos setores fundamentalistas, de estar ao lado do poder. E de estar onde acreditam poder obter mais benefícios.

Houve algum pedido não atendido?

Absolutamente não. Pelo contrário, fomos muito generosos. Inclusive por isso a surpresa da presidenta Dilma quando, ao telefonar para o Edir Macedo e pedir apoio na votação do impeachment, ouvi-lo dizer que infelizmente ele não poderia fazer nada, afirmando que uma coisa era a Universal, outra a Record e outra a bancada. O que houve foi um senso apurado de para onde penderia o poder dali em diante. Tanto que eu sei, agora, que o Bolsonaro prometeu mundos e fundos para as igrejas e não está entregando, e o relacionamento deles está mudado. O que são essas entregas? Em geral, concessões de rádio e TV. Isso são as grandes lideranças, mas quero voltar a pontuar: as igrejas, lá na periferia, estão ajudando os pobres, tirando a pessoa da cachaça, ajudando as pessoas a encontrar emprego solidariamente.

Você tem orado pelo Lula? É uma pergunta retórica, porque sei que você deve fazê-lo. Você enxerga alguma dimensão espiritual pelo drama que ele está vivendo desde que foi preso?

Bom, eu vivi no seminário muitos anos. Não terminei o seminário, mas depois ingressei na Pastoral Operária. Sou uma pessoa de oração diária. Isso não quer dizer que sou bom, melhor que alguém. Eu procuro sempre fazer uma avaliação da minha prática. Digo tudo isso para responder que sim, eu rezo sempre pelo Lula. Ele é uma pessoa que tem uma prática religiosa não-doutrinária, mas tem muita fé. E acho que essa fé está na raiz das revelações da série de reportagens da Vaza Jato. Eu acho que isso é um milagre da Dona Lindu (mãe de Lula).

Por favor, explique isso um pouco melhor: por que você acha que a Vaza Jato é um milagre da Dona Lindu?

Essa expressão que uso não deve ser interpretada em termos literais. É uma brincadeira. Mas eu digo isso porque a Dona Lindu tinha muita fé, e ela transmitiu isso ao Lula. E ela costumava sempre dizer a ele que o mal não venceria, que a verdade e as boas ações prevaleceriam. A Dona Lindu, eu sei disso, ela protege o Lula. A presença espiritual dela na vida dele é muito forte. Ele sabe disso, nós já conversamos sobre isso. Por isso, costumo dizer: não mexam com o Lula, porque a Dona Lindu cuida dele.

Ok, muito obrigado.

Eu queria acrescentar algo. Creio que precisamos fazer o diálogo com os religiosos com respeito, com paciência, sem negar-lhes o reconhecimento daquilo em que acreditam.

Isso significa fazer concessões, por exemplo, em temas como aborto?

Absolutamente não. Mas é procurar os pontos de unidade. Olha, toda a família conhece e convive, ou conviveu, com acontecimentos como abortos ou com pessoas de diferentes orientações sexuais. Também nas comunidades periféricas. Eu sei disso porque eu vivi um ano em favela. A pessoa vive algo mas, por força da educação religiosa ou da tradição, diz algo totalmente diferente. Mas o que não adianta é atacar a crença da pessoa.