Fundo de Dallagnol vilipendia a Constituição, macula a Petrobras e privatiza dinheiro público. Por Vinícius Segalla

Atualizado em 9 de março de 2019 às 8:33
Deltan Dallagnol

POR VINÍCIUS SEGALLA

Os procuradores da Operação Lava Jato, capitaneados por Deltan Dallagnol, estão prestes a criar um fundo bilionário com recursos retirados da Petrobras, que, de uma só tacada, altera a letra da Constituição, cria novas funções institucionais para o Ministério Público no Brasil, afronta o Código Penal ao dar destino privado para verbas públicas e reduz a pó a prerrogativa da maior estatal brasileira de lutar pelos seus direitos na Justiça.

Tudo devidamente homologado pela Justiça brasileira, por decisão da juíza federal substituta Gabriela Hardt, de Curitiba.

Em resumo, o MPF-PR assinou acordos com autoridades dos Estados Unidos e com a Petrobras que obrigam a estatal brasileira a depositar em uma conta gerida pelo MPF-PR o montante de R$ 2,5 bilhões, ou 80% do valor em que ela estaria sendo multada nos EUA, em uma espécie de acordo de leniência assinado por lá em virtude de ilícitos que a companhia teria cometido naquele país.

O montante será dividido em duas partes. Metade (R$ 1,25 bilhão) será destinada ao pagamento de credores da Petrobras, que teriam sido onerados pelas operações ilícitas em que a estatal teria se envolvido.

Este dinheiro ficará em uma conta judicial sob gestão do MPF-PR. O restante irá para um fundo privado que será criado e gerido pelos procuradores da Lava Jato e mais quem eles escolherem.

O dinheiro envolvido é muito mais do que todo o orçamento deste ano direcionado ao MPF-PR. Na verdade, é mais do que 60% do orçamento do MPF no Brasil todo, que será de R$ 4 bilhões no exercício financeiro de 2019.

Todo o processo que culminará na criação do fundo bilionário, de número 5002594-35.2019.4.04.7000, corrente na 13ª Vara Federal do Paraná, corre sob segredo de Justiça.

Era só para todo o país ter ficado sabendo do acordo secreto fechado por Dallagnol quando todo o dinheiro já estivesse em uma conta bancária gerida pelo procurador e quem mais ele delegar.

Assim prometeu a juíza Gabriela Hardt, no despacho em que autoriza a criação do fundo: “Assim que efetuado o depósito, levanto o sigilo sobre o acordo e a homologação.”

Os procuradores desejavam ainda mais segredo. A magistrada, no entanto, achou que, daí, eles estariam quebrando alguns princípios legais, e negou:

“Não cabe a manutenção de sigilo sobre o próprio conteúdo do acordo e de sua homologação, o que seria contrário ao princípio da publicidade, aplicável ao processo judicial e à Administração Pública.”

No início da semana, porém, vazaram alguns dos mais importantes documentos relacionados ao caso. E o que neles se observa é algo de dimensão tal que o país ainda nem conseguiu tomar pé de tudo.

Veja, abaixo, quais são as maiores inovações, ilegalidades e impossibilidades jurídicas vindas à tona com o vazamento dos acordos secretos assinados pelos procuradores da Lava Jato.

1 – A farsa de Dallagnol. Foi ele quem decidiu que o MPF-PR será o gestor do fundo

A primeira vez que o Brasil ouviu falar dos acordos que perpetrava o MPF-PR com dinheiro da Petrobras nos EUA foi em 27 de setembro do ano passado. A estatal e os procuradores informaram à nação que as partes haviam fechado um acordo prevendo que a Petrobras entregasse ao MPF o montante de R$ 2,5 bilhões.

A informação foi passada sem que o documento que selava acordo – protegido sob o manto do segredo judicial – fosse exibido aos brasileiros.

O que a Petrobras e os procuradores deram a entender era que as autoridades norte-americanas tinham feito constar no acordo assinado por eles que todo o montante deveria ser entregue à gestão do MPF.

O jornalista e blogueiro Valdo Cruz, do jornal Valor Econômico e do Portal G1, foi o primeiro a dar a notícia. Ele escreveu: “Pelo entendimento (o acordo), cerca de R$ 2,7 bilhões serão pagos ao Ministério Público brasileiro.”

No dia seguinte, o portal Migalhas, especializado em notícias jurídicas, abordou o assunto, criticando esta exigência, que constaria no acordo com os norte-americanos:

“O que não se compreende é que, segundo o acordo, a penalização seja destinada ao MPF. Isso mesmo, consta no documento que 682 milhões de dólares, algo como R$ 2,7 bilhões, vá para a Lava Jato para que eles apliquem em ‘projetos sociais e educacionais visando à promoção da transparência, e cidadania e conformidade no setor público’. Diz-se que as autoridades americanas não aceitavam o dinheiro ir para o Estado brasileiro, porque ele seria o sócio majoritário da Petrobras, de forma que não seria uma ‘penalização’.”

Eis que nesta semana, porém, os documentos vazaram. E o que se descobriu é que isso apenas não é verdade.

Não, os Estados Unidos jamais assinaram acordo algum determinando que a Petrobras entregasse a multa bilionária à gestão de Dallagnol e seus procuradores. Veja, abaixo, o trecho do acordo referente a este ponto:

“The Fraud Section and the Office will credit 80% of the criminal penalty against the amount the Company pays to Brazilian authorities, pursuant to their resolution.”

Em tradução livre, o acordo determina que a Petrobras pague 80% do valor da multa devida (R$ 2,5 bi) a autoridades brasileiras, da maneira que se resolver.

Em outro trecho:

“The Fraud Section and the Office agree to credit the remaining amount of the Total Criminal Penalty against the amount the Company pays to Brazil, up to 80 percent of the Total Criminal Penalty, equal to $682,560,000.”

Ou seja, que a companhia (Petrobras) pague ao Brasil, e não ao MPF, o valor devido.

Assim, sem meias palavras: a Petrobras e o MPF mentiram. Não, não foi uma condição imposta pelos EUA que eles, procuradores da Lava Jato, ficassem a cargo de gerir o dinheiro.

Quem teria, então, criado a obrigação de a multa bilionária da Petrobras ir parar sob a gestão da Lava Jato? Resposta: os próprios procuradores da Lava Jato!

Foram eles que fizeram constar, em um outro acordo posterior que também vazou nesta semana, desta vez assinado exclusivamente entre a Petrobras e o MPF-PR, que o dinheiro irá parar na conta e fundo a serem geridos por Deltan Dallagnol e sua equipe:

2.2.’1. O depósito será feito dentro do prazo de 30 dias contados da data da homologação, em conta vinculada ao respectivo Juízo Federal.

2.4.2. O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ficará responsável por buscar meios para a constituição de fundação privada (Inclusive a redação de sua documentação estatutária), com sede em Curitiba/PR, e poderá cantar com a auxílio de entidade(s) respeitada(s) da sociedade civil, do poder público ou do Ministério Público para conferir o máximo de efetividade às finalidades do acordo.

2 – A nova (e inconstitucional) função do MPF e a gestão privada de dinheiro público

Pelos acordos de Dallagnol, como hoje se sabe, o Ministério Público Federal no Paraná, juntamente com o Ministério Público Estadual do Paraná, irão gerir a conta para pagamentos de credores e um fundo privado criado por eles que irá investir o dinheiro público em ações que julgar convenientes.

Tais ações devem buscar a reduzir a corrupção no Brasil, por meio da “promoção da cidadania, formação de lideranças e aperfeiçoamento de práticas políticas”. É isso que consta no acordo.

Quem assinou pelo MPF? “Os Procuradores Regionais da República e Procuradores da República signatários, com designação para oficiar na Operação Lava Jato.” São eles: Deltan Dallagnol, Antonio Carlos Welter, Isabel Cristina Groba Vieira, Januário Paludo, Orlando Martello Junior, Diogo Castor de Mattos, Roberson Henrique Pozzobon, Júlio Carlos Motta Noronha, Jerusa Burmann Viecili, Paulo Roberto Galvão, Athayde Ribeiro Costa e Laura Tessler.

Quer dizer: os procuradores da Lava Jato, sem qualquer autorização da Procuradoria-Geral da República ou de qualquer instância superior da Justiça brasileira, resolveram emendar a Constituição Brasileira para criar novas funções para si mesmos e para os órgãos que representam. E elas vão muito, mas muito além de suas exclusivas prerrogativas constitucionais (art. 129 da Constituição), de fiscais da lei e titulares da ação judicial pública. Agora, terão que dividir seu tempo entre o que manda a lei e a sua nova prerrogativa: a de gestores de fundo privado bilionário criado com recursos públicos.

Assim, o acordo com a Petrobras e as diretrizes para a formatação do fundo (que ainda não está instituído) se deu em terreno livre de qualquer legislação, visto que a mera hipótese de sua criação não encontra nenhum respaldo legal, nenhuma regulamentação que a preveja. Neste vazio normativo, correu solta a criatividade legiferante de Dallagnol e seus parceiros, que fizeram constar no acordo uma série de invencionices sem qualquer razão ou possibilidade jurídica de existir. Vale lembrar: a um servidor público, cabe fazer o que a lei manda, nada além disso. Tudo que não é previsto em lei, é proibido a um servidor público criar por mero voluntarismo. Então:

  • Consta que a sede do fundo será em Curitiba. Por quê? Baseado em qual norma?
  • Consta que os procuradores irão selecionar os membros do conselho que irá gerir e definir onde e como serão aplicados os recursos bilionários. Por quê? Sob qual previsão? O transbordamento das funções legais da Procuradoria ultrapassa o limite da compreensão.
  • Consta que que o MPF-PR e o MP-PR terão assento garantido no board diretivo do fundo. Por quê? Onde está escrito que estes órgãos devem assumir tais funções, de ter garantida sua participação na gestão do fundo bilionário?
  • Consta que o fundo será de natureza privada, sem a ingerência da Petrobras ou qualquer autoridade pública brasileira, que não o Ministério Público. Não existe nada nem próximo no Orçamento Jurídico brasileiro de autorizar ou regular a gestão de dinheiro público por meio de uma entidade privada sem que esta tenha se submetido aos trâmites previstos para concorrências, parcerias e convênios com o Estado.
A juíza Gabriela Hardt

3 – O vilipêndio do direito da Petrobras de ir à Justiça e a suspeição obrigatória em que se coloca o MPF

Pelo acordo, a Petrobras deverá manter o MPF-PR atualizado sobre os andamentos de todos processos judiciais e arbitrais em que se envolva. Além disso, a empresa jamais poderá se opor ao ingresso ou ações da procuradoria em tais processos.

Ou seja, a petrolífera está sendo obrigada a renunciar ao direito pétreo de recorrer à Justiça quando achar que seus direitos estão sendo feridos. A expressão “contrato leonino” não é capaz de abarcar uma ilegalidade desta dimensão.

Mais: o MPF informa que irá atuar em processos e arbitragens da companhia sempre que quiser, mesmo que não haja indício de má versação de recursos públicos, ultrapassando mais uma vez seus desígnios constitucionais.

Ainda mais: o valor de R$ 1,25 bilhão que será contingenciado em conta remunerada (ou seja, que rende juros) controlada pelos procuradores servirá justamente para pagar os credores da empresa que surgirão quando e se esta vier a ser condenada nesses processos.

Mas, também prevê o acordo que, após dois anos do depósito dos valores na conta judicial, todos os juros gerados pela remuneração da conta serão revertidos para o fundo do MPF-PR. E, depois de cinco anos, se ainda restar algum valor nesta conta, também será revertido para o fundo de Dallagnol.

Está claro o que isso quer dizer?

A partir de agora, o Ministério Público Federal estará sempre em suspeição quando atuar nos processos envolvendo a Petrobras. Isso porque quanto menores forem os valores a serem pagos pela empresa nesses processos, mais dinheiro receberá o fundo do MPF-PR! Ou seja, o MPF-PR se tornou um parceiro jurídico e econômico da Petrobras, e não mais um fiscal da Lei!

4 – O desrespeito ao acordo firmado com as autoridades dos Estados Unidos e o risco de se perder todo o dinheiro

Como se nota, o acordo do MPF-PR com a Petrobras devolve à própria empresa metade do valor da multa que ela está pagando. Isso porque tal montante será utilizado para pagar as próprias dívidas judiciais da empresa.

Acontece que isso representa uma violação cristalina do acordo feito com as autoridades norte-americanas, pondo em risco toda a operação e os recursos que se promete repatriar.

Já foi demonstrado acima que o acordo com as autoridades estrangeiras prevê que o total de R$ 2,5 bilhões seja entregue ao Brasil. No acordo com os Estados Unidos, a Petrobras figura como réu, ela está recebendo a punição de desembolsar este valor como multa por seus mal feitos. Assim, jamais poderia ficar parte deste dinheiro para pagar suas dívidas judiciais!

Assim, é evidente o risco em que Dallagnol coloca o total desses recursos ao criar este acordo com a petrolífera. Consta, inclusive, no contrato com os norte-americanos:

“In the event that the Company does not pay to Brazil any part of the $682,560,000 in the timeframe specified in the agreement between Brazilian authorities and the Company, the Company will be required to pay that amount to the United States Treasury.”

Traduzindo livremente, se a Petrobras não pagar o total do montante previsto “ao Brasil”, será requerida a pagar o montante ao Tesouro dos Estados Unidos.

Resta esperar para ver.

5 – A canetada da juíza Gabriela Hardt: “Eles não podem fazer isso, mas merecem!”

A juíza federal substituta Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba, não se deixou abater por nenhuma das solares ilegalidades e invencionices de Deltan Dallagnol e sua equipe: homologou de pronto o acordo do MPF-PR com a Petrobras, a destinação do dinheiro público para a gestão dos procuradores e a criação do fundo privado.

Como não poderia deixar de ser, não ancorou sua decisão em nenhuma previsão legal, visto que previsões legais não existem para o monstrengo jurídico criado pela Lava Jato.

Como, então, a magistrada justificou sua decisão? Como segue abaixo:

“Cumpre observar o protagonismo do MPF e da Petrobrás na obtenção da concessão no acordo desta com as autoridades dos Estados Unidos. Sem a intervenção do MPF e da Petrobrás, muito provavelmente não seria possível a amortização de 80% da multa milionária pactuada no acordo com as autoridades daquele país, mediante pagamentos e investimentos de interesse coletivo no território nacional”. (…)

“Por esta circunstância concreta, é o MPF a entidade melhor posicionada para a celebração do presente acordo com a Petrobrás (sic). Nessas condições, entendo que o acordo merece homologação. Ante o exposto, homologo o Acordo de Assunção de Compromissos, firmado entre o MPF e a Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás.”

Ou seja, à falta de previsão legal para se homologar o acordo e a criação do tal fundo, a juíza justificou sua aprovação dizendo que os procuradores da Lava Jato merecem ficar com a tarefa.

Em outras palavras, o que a magistrada disse foi: “Os procuradores da Lava Jato fizeram tão bem seu trabalho nos EUA, trouxeram de volta o dinheiro para o Brasil, que o acordo merece ser homologado.”

Mas, e a Lei? A Lei? Ora, a lei.