“Caso excepcionalíssimo”: Fux conseguiu arrastar STF para cova onde justiceiros querem enterrar a Constituição. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 16 de outubro de 2020 às 7:40
Marco Aurélio, cabeça erguida, diz a Fux que ele é autoritário e este, cabeça baixa, usa Deus para justificar o populismo judicial. Fotos: reprodução do YouTube

O resultado do julgamento sobre a liminar concedida pelo decano do STF, Marco Aurélio Mello, pode ser comemorado pelos leigos e linchadores ou por quem assiste a um linchamento sem ter a coragem de se manifestar contra a violência.

E quando se diz linchamento, não se está referindo ao ministro mais experiente da corte, muito menos ao cidadão André de Oliveira Macedo, o André do Rap, apontado como traficante internacional ligado ao PCC. Mas à Constituição e às leis construídas sob seu império.

Fux conseguiu o carimbo da STF para uma prática autoritária e ilegal que já havia sido praticada pelo notório Tribunal Regional Federal da 4a. Região. Ou seja, considerar que o Judiciário, em determinadas situações, pode agir excepcionalmente, ou seja, como um tribunal de exceção, à margem da lei.

Em setembro de 2016, quando o golpe midiático-judiciário-parlamentar já tinha sido consumado, o TRF-4, julgando um caso de claro abuso por parte do então juiz Sergio Moro, considerou que, em determinadas situações e em determinados casos, um magistrado pode agir excepcionalmente, sem seguir as regras aprovadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pelo  Executivo.

Na época, o que se julgava era uma reclamação assinada por 19 advogados contra Moro por ter rasgado a Constituição nas decisões da Lava Jato.

Na época, o que se buscava, pelas vias institucionais, era a punição de um magistrado que violou o sigilo telefônico do escritório que defende o ex-presidente Lula, bem como a violação de conversa telefônica da presidente da república.

O relator da reclamação foi o desembargador federal Rômulo Pizzolatti, que em seu voto declarou:

“Assim, tendo o levantamento do sigilo das comunicações telefônicas de investigados na referida operação servido para preservá-la das sucessivas e notórias tentativas de obstrução, […], é correto entender que o sigilo das comunicações telefônicas (Constituição, art. 5º, XII) pode, em casos excepcionais, ser suplantado pelo interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal”, disse ele.

No mesmo voto, voltou a falar de exceção:’

“(…) a ameaça permanente à continuidade das investigações da operação ‘lava jato’, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional.”

Compare-se a frase do desembargador com a expressa nesta tarde por Luiz Fux, ao responder à manifestação de Marco Aurélio Mello, dura como não poderia deixar de ser, considerando-se que o presidente do STF, sem previsão legal, cassou decisão de Marco Aurélio.

Chamado de autoritário, Fux declarou, cabeça baixa, voz mansa:

“Eu queria dizer a vossa excelência, em primeiro lugar, que o caso foi excepcionalíssimo e por isso efetivamente a Suprema Corte ratificou, muito embora tenhamos todos deixado claro que o caso excepcional exigia uma intervenção judicial”, disse.

Na mesma frase, Fux usou duas vezes, com grau diferente, a palavra “exceção”.

Que garantia um cidadão tem, a partir de agora, diante de um caso levado ao Judiciário? Um magistrado poderá dizer que, como decidiu o STF, há situações que podem, sim, ser tratadas com excepcionalidade.

A exceção é o veneno que mata o Estado Democrático de Direito, o horror que se viu no regime totalitário de Josef Stálin na extinta União Soviética, de Adolf Hitler na Alemanha nazista ou dos generais da ditadura pós-64. Não há circunstância que a justifique.

Se a lei falha no seu propósito, como pode ter ocorrido com o pacote anticrime, a democracia tem instrumentos para corrigi-la, a própria revisão por parte daqueles que têm poder constitucional para isso, os congressistas.

Nenhum juiz ou mesmo colegiado pode inventar mecanismo para corrigir o que se entende ser, em determinado momento, errado. Isso é próprio de tirania, daqueles que se consideram o próprio Estado. Foi o que Fux fez ao cassar a liminar de Marco Aurélio, como se se proclamasse:

“O Judiciário sou eu”.

Fux seria agora a quinta instância da Justiça. Inadmissível, mesmo se se considerar que o paciente do HC seja apresentado pela Globo, dia e noite, como um perigoso traficante, como se todas as acusações contra ele já tivessem transitado em julgado.

Não se está aqui defendendo André de Oliveira Macedo, o André do Rap. Mas todos os brasileiros que não usam toga — e mesmo aqueles que usam ou usaram, se acusados de crime. Devem ser punidos, mas dentro das regras do jogo.

Imagine-se que, num jogo de futebol, por circunstâncias da partida, o árbitro decide que, em determinadas situações, um impedimento não pode ser anotado, por se se considerar que o jogo tinha características excepcionais. Num caso assim, seria de se perguntar: então, para que regras?

Hoje, à luz dos desdobramentos da história, já se sabe, por exemplo, que Sergio Moro foi um juiz parcial — ou ladrão, para não sair da metáfora futebolística —, o julgamento do TRF-4 sobre a reclamação dos 19 advogados já pode ser visto como um dos momentos mais vergonhosos do Judiciário.

Naquele momento, no entanto, diante do que se chamaria de “voz das ruas”, considerar que processos podem ser tratados como exceção não foi rechaçado, mesmo por instituições que deveriam defender o Estado Democrático de Direito, como a OAB.

Agora, os violadores da Constituição subiram de patamar e encontraram refúgio na última instância do Poder Judiciário.

É muito mais grave.

No julgamento do TRF-4, apenas um desembargador votou contra a legitimação da Lava Jato como tribunal de exceção.

“O Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, pois sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos do eminente relator e dos demais membros desta corte”, disse Rogério Favreto.

O resultado foi 13 a 1 e hoje toda pessoa lúcida não poderá deixar de dar razão a ele.

Marco Aurélio Mello também foi o único a votar contra a manobra ilegal realizada por Fux, manobra que teve o aplauso do Grupo Globo de Comunicação.

No futuro, quando essa onda autoritária passar, estudiosos verão em votos isolados como de Marco Aurélio e de Favreto como a manifestação correta de servidores do Judiciário (ministro quer dizer servidor).

A Constituição foi sepultada, mas os brasileiros podem trazê-la de volta à vida, tirar a lama de sua capa e devolvê-la à sociedade, para que todos tenham paz, com a certeza de que, acima de tudo, está a Constituição.

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PS: Fux, ao encerrar a sessão de hoje, usou indevidamente o nome de Deus, a quem agradeceu pelos trabalhos.

Se conhecesse a Bíblia, saberia que há um verso que diz:

“Não carregueis convosco dois pesos, um pesado e o outro leve, nem tenhais à mão duas medidas, uma longa e uma curta. Usai apenas um peso, um peso honesto e franco, e uma medida, uma medida honesta e franca, para que vivais longamente na terra que Deus vosso Senhor vos deu. Pesos desonestos e medidas desonestas são uma abominação para Deus vosso Senhor”.

Assim diz a Bíblia do Deus a quem Fux, demagogicamente, agradeceu. Melhor seria não invocar nem aquele verso nem o nome de Deus para justificar o populismo judicial. Numa democracia, o texto sagrado é a Constituição, que em muitos pontos está plenamente de acordo com a moralidade expressa em textos religiosos. Mas não convém misturar as duas coisas.