“Fux e Barroso eram meus colegas e rompi com eles”: Afrânio Silva Jardim, o último rebelde no direito. Por Larissa Bernardes

Atualizado em 27 de janeiro de 2019 às 7:41
Afrânio Silva Jardim (Foto: Reprodução/Facebook)

No direito, a importância do jurista de cabelos e barbas longas e grisalhas, com tatuagens no braço, pode ser dimensionada pela obra “Tributo a Afrânio Silva Jardim” (editora Lumen Juris).

“O legado de Afrânio Silva Jardim não se esgota em seu pensamento jurídico, mas complementa com seu perfeccionismo, com seu comprometimento profissional, com a seriedade com que trata os assuntos inerentes ao processo penal e a preocupação que demonstra com o fundo da ciência processual que ajudou a consolidar ao longo dos últimos anos”, destacam os editores, na apresentação da obra.

Em 2017, depois de um período em que se entusiasmou com a Lava Jato (“Ninguém é a favor da corrupção”), pediu à editora que retirasse um dos artigos publicados em sua homenagem.

Era o de Sérgio Moro, com quem trocava mensagens. Na últimas delas, questionou aspectos processuais da Lava Jato que, na visão dele, representavam a manipulação do direito para atingir alvos políticos, sobretudo o ex-presidente Lula.

Em resposta, Moro discordou e disse que lamentava. Desde então, não trocaram mais mensagens.

Nesta entrevista exclusiva à jornalista Larissa Bernardes, do Diário do Centro do Mundo, explica por que, desde a Lava Jato, sua visão sobre o direito mudou.

Ele se decepcionou tanto com a aplicação do direito no país, contaminada pela Lava Jato, que decidiu se retirar do magistério.

DCM – Como se deu a decisão de deixar o direito?

Afrânio Silva Jardim – Me aposentei com 60 anos no MP e fiquei só na UERJ. Nesse meio tempo, também me interessei por criação de cachorro, Dogue Alemão. Tive muitos cães, muita exposição e me afastei um pouco do direito. Quando eu voltei, há uns quatro anos, publiquei a 16ª edição do meu livro, saiu um livro em minha homenagem e me empolguei de novo. Foi um processo bem lento, nunca é uma coisa abrupta.

Primeiro eu me decepcionei com o que estava acontecendo no nosso sistema de justiça criminal. Verifiquei que nosso sistema judiciário, o Ministério Público, assumiu um lado ideológico muito complicado na minha ótica. Quando entra uma questão ideológica, religiosa, política, a imparcialidade fica muito comprometida.

O Lula passou a ser um inimigo a ser combatido pelo Judiciário e fizeram coisas, em termos técnicos, ilegalidades que não se justificam.

Depois veio uma constatação que o Supremo Tribunal Federal passou a fazer expedientes, artimanhas, para não decidir como deveria decidir nos casos concretos.

Essa tal punição da Lava Jato é em termos, punem quem eles querem. O acordo de delação premiada é pura seletividade.

Tudo isso mostra uma situação caótica, e os ministros do STF legislando. O Barroso, iluminista, achando que está modificando a sociedade. É um messianismo.

É um desestímulo para o profissional do direito continuar trabalhando. São 39 anos lecionando processo penal. Todas aquelas coisas que a gente falava, a legalidade, “o fim não justifica os meios”, “temos que punir dentro da lei”, tudo está sendo colocado de lado.   

Se você for fazer um retrospecto destes últimos 4 anos, em termos jurídicos, é um caos, é um absurdo. São todos de direita e contra os políticos de esquerda.

[Os ministros do STF] Fux e o Barroso eram meus colegas na UERJ, eu rompi com eles. Não quero mais nem encontrá-los na faculdade. Rompi com eles. Não sei nem se eles sabem, porque são tão importantes [risos], mas do meu lado não tem mais amizade. [O Fux] deixar o presidente Lula preso na situação que deixou, é uma maldade.

DCM – Você ainda está lecionando na UERJ ou já saiu de lá?

Afrânio – Até para se aposentar está difícil com esse novo governo aqui do estado, aquele que quer abater marginal como se fosse passarinho. Enfim, agendei para dia 5 [de fevereiro] o início do meu processo de aposentadoria. Eu requeri para requerer a aposentadoria [risos]. Se não sair, eu pego uma turma até o meio do ano no máximo.

DCM – Você não acha que justamente neste momento seu trabalho no magistério se faz necessário?

Afrânio – Veja bem, eu fiquei 18 anos no mestrado e doutorado da UERJ, me afastei da graduação. Estava lá [na graduação] há uns 10, 12 anos e depois fui para o mestrado e doutorado.

Quando voltei [para a graduação], senti uma grande diferença nos alunos. Não era como o que eu tive em 1988, 1990. Hoje estão desinteressados, não estão informados de nada. É só WhatsApp para lá, WhatsApp para cá. Não sabem de nada. O pior, não é que não sabem, é que não querem saber.

Eu até brinquei com meus alunos que os invejava, pois não tive movimento estudantil e vivência universitária por causa do AI-5. Eles têm tudo isso e não aproveitam. Não estendem uma faixa, não fazem uma passeata…

Não estou retirando o time de campo não, viu? Mas vou procurar um local de fala mais eficaz, mais efetivo.

DCM – Continuará a luta pela democracia de outra forma?

Afrânio – Sim, vou continuar reeditando, atualizando e ampliando meu livro, que já está na 16ª edição e tem grande influência no meio acadêmico. Tenho meu Facebook, com mais de 87 mil leitores, onde publico meus textos.

E também vou continuar com as palestras, não muito técnicas, ligadas ao direito, porque aí (o direito) é enganação. Eles fazem o que querem.

.x.x.

A vida muito além do direito

Afrânio Silva Jardim nasceu no Rio de Janeiro em 1950 e viveu na capital até os anos 2000, quando se mudou para o interior do estado.

Livre-docente em processo penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Direito das relações sociais pela Universidade Gama Filho (UGF), é um dos maiores processualistas do Brasil.

Família Silva Jardim

É membro de uma tradicional família de republicanos do Rio de Janeiro, que dá nome a ruas e ao município fluminense de Silva Jardim. A cidade, que anteriormente se chamava Capivari, recebeu o nome atual em 1943 em homenagem a Antônio Silva Jardim, tio-avô de Afrânio que atuou nos movimentos abolicionista e republicano no século XIX.

Carreira

Afrânio Silva Jardim encontrou a paixão pelas leis logo cedo, através do pai que era advogado. Em 1969, foi estudar direito na UFRJ. Diz que foi por sorte que entrou na universidade após o AI-5, porque, com seu temperamento, teria entrado para a resistência armada e talvez “nem estivesse aqui” para contar história.

Afrânio foi promotor de Justiça no Ministério Público durante 31 anos. Está há 39 no magistério. Atualmente, é professor associado do Departamento de Direito Processual da UERJ, onde leciona nos cursos de mestrado e doutorado.

Em 2010, os maiores juristas do país, incluindo nomes como Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim, Fausto Martin De Sanctis, Geraldo Prado, Eugênio Pacelli, Maria Lúcia Karam e até Sérgio Moro, se reuniram para homenagear Afrânio através do livro Tributo a Afrânio Silva Jardim: escritos e estudos”, publicado pela editora Lumen Juris.

Afrânio solicitou à editora que retirasse o trabalho e o nome do ministro de Jair Bolsonaro da obra. As próximas edições já não contarão com a presença de Sérgio Moro.

O jurista se correspondia com o ex-juiz sobre assuntos ligados à magistratura, mas cortou relações com Moro após as primeiras arbitrariedades cometidas pela Lava Jato.

Morte da filha

Dono de uma carreira notável, Afrânio passou por uma tragédia pessoal em 2014. O jurista perdeu a filha, Eliete Costa Silva Jardim, vítima de embolia pulmonar causada por uma cirurgia. Eliete tinha 35 anos na época e deixou dois filhos pequenos.

Afrânio fala com muita ternura e orgulho da filha, que foi defensora pública. Também fala abertamente sobre o falecimento de Eliete, diz que o faz para que seus netos conheçam quem foi a mãe.

Apesar de todo sofrimento, consegue tratar a morte de uma forma leve. Brinca que já preparou o roteiro de seu funeral e escalou um amigo para cuidar da playlist de músicas.

Aposentadoria

Há algumas semanas, Afrânio, que já é aposentado pelo Ministério Público, anunciou que se aposentará também do magistério.

Afrânio se diz decepcionado diante das movimentações escusas e antidemocráticas do sistema judiciário brasileiro.