“Gabinete das sombras” fez visita secreta ao Ministério da Saúde

Atualizado em 15 de junho de 2021 às 13:35
Paolo Zanotto. Foto: Reprodução/RedeTV

Publicado originalmente no Brasil de Fato:

Por Paulo Motoryn e Igor Carvalho

O “gabinete das sombras”, grupo de médicos pró-cloroquina que é acusado de aconselhar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, fez uma reunião secreta na sede do Ministério da Saúde, em Brasília, em 9 de setembro de 2020, dia seguinte a uma reunião no Palácio do Planalto.

O documento com a comprovação das visitas ao ministério foi obtido pela reportagem por meio de pedido com base na Lei de Acesso à Informação, em janeiro de 2021. Nele, são listados os mais de 41 mil registros de acesso às dependências no prédio principal do Ministério da Saúde, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, durante o ano passado.

As presenças dos médicos que defendem um suposto “tratamento precoce” contra a covid não foram registradas nas agendas oficiais do então ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello, atual secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, e do então secretário-executivo Elcio Franco. A agenda do então secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos, Hélio Angotti Neto, não está mais disponível.

Os registros de visitas à sede da pasta mostram que o biólogo e virologista e professor da USP, Paolo Zanotto, que ficou conhecido por mencionar a expressão “shadow cabinet” (em portugês, “gabinete das sombras”) na reunião com Bolsonaro, foi um dos integrantes do grupo que visitou o ministério.

Em 9 de setembro de 2020, ele passou pela portaria da pasta às 13h56. Foi direcionado para o 8º andar, onde fica localizada a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, comandada à época por Hélio Angotti Neto, médico e discípulo do escritor Olavo de Carvalho. A área é responsável pela indicação de medicamentos ao Sistema Único de Saúde (SUS).

No documento, para cada visita, há o registro de data/hora, órgão e andar de destino, além do servidor responsável pela autorização. No caso de Zanotto, no entanto, algumas informações não constam. Nenhum servidor é apontado como autorizante. Ele tampouco foi direcionado a algum órgão específico, como é de praxe.

O oftalmologista Antonio Jordão Neto também ingressou nas dependências da pasta na mesma data, às 15h40 – pouco menos de duas horas depois de Zanotto. Ele também esteve na reunião no Palácio do Planalto no dia anterior como presidente da Associação Médicos Pela Vida, grupo de médicos que promoveu o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para combater a covid-19.

No dia anterior, durante reunião com Bolsonaro e o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) no Palácio do Planalto, transmitida ao vivo nas redes sociais do presidente, Jordão sentou ao lado do mandatário. Na ocasião, disse que Paolo Zanotto e a médica Nise Yamaguchi seriam “membros beneméritos” dos Médicos Pela Vida. Os dois ficaram conhecidos pela defesa enfática do “tratamento precoce”.

O oncologista Eduardo Miranda Brandão, a ortopedista Tilma Belfort de Moura e a economista Maria Dulce de Souza Leão Sampaio também entraram no Ministério da Saúde em 9 de setembro, poucos minutos depois que Jordão, por volta das 15h40. Os três se identificaram na portaria como integrantes dos Médicos Pela Vida. Foram autorizados por uma servidora identificada apenas como “Valda”.

Veja os detalhes dos registros das visitas do “gabinete das sombras” no Ministério da Saúde:

Visitas de médicos do “ministério paralelo” são comprovadas por registros oficiais / Bertolo

Quem é quem

Paolo Zanotto: virologista da USP. É referência no estudo da evolução dos vírus. Tem mais de 8.500 citações na plataforma Google Acadêmico. Em março de 2020, escreveu artigo recomendando medidas de isolamento social. Depois, passou a defender o “tratamento precoce”;
Antonio Jordão Neto: médico oftalmologista de Garanhuns (PE), formado na Faculdade de Ciências Médicas da Fundação de Ensino Superior de Pernambuco (Fesp) – atual Universidade de Pernambuco. Foi homenageado em sessão da Câmara Municipal de Recife em 2013 e disputou cargo na eleição do Conselho Federal de Medicina (CFM) em 2019, pela chapa “Dignidade Médica”;
Eduardo Miranda Brandão: cirurgião oncológico em Recife. Foi candidato a vereador em Garanhuns nas eleições de 2020, pelo DEM. Teve a candidatura considerada inapta pela Justiça Eleitoral. Declarou patrimônio superior a R$ 3 milhões;
Tilma Belfort de Moura: pediatra formada na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco. Também disputou cargo na eleição do Conselho Federal de Medicina (CFM) em 2019;
Maria Dulce de Souza Leão Sampaio: economista formada na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em Recife. Não tem formação na área da medicina. É assessora dos Médicos Pela Vida.

Médicos pela vida

A Associação Médicos Pela Vida tem sede em Recife (PE). O CNPJ do grupo é registrado com o nome Associação Dignidade Médica de Pernambuco (ADM/PE). Foi inaugurado em dezembro de 2013. O presidente é justamente Antonio Jordão Neto.

Em fevereiro de 2021, o grupo assinou a publicação de um anúncio pró-cloroquina, de teor negacionista e anticientífico sobre a pandemia de covid-19, em jornais de grande circulação.

A veiculação do conteúdo foi feita na seção de informes publicitários por veículos como Folha de S. Paulo e O Globo. As publicações foram alvo de uma carta de repúdio assinada por artistas e comunicadores como Caetano Veloso, Bel Coelho e Astrid Fontenelle.

Mudança na bula da Cloroquina

Em depoimento à CPI da Pandemia, no dia 4 de maio, Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, contou aos senadores que participou de uma reunião com um grupo de médicos e outras pessoas, entre elas, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente.

“Ele (Bolsonaro) tinha um assessoramento paralelo. Nesse dia, havia sobre a mesa, por exemplo, um papel não timbrado de um decreto presidencial para que fosse sugerido, daquela reunião, que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, colocando na bula a indicação de cloroquina para coronavírus. E foi, inclusive, o próprio presidente da Anvisa, Barra Torres, que estava lá, que falou: ‘isso não’. E o ministro Jorge Ramos falou: ‘não, não, isso daqui não é nada da lavra daqui. Isso é uma sugestão’”, afirmou Mandetta aos senadores.

Fontes consultadas pelo Brasil de Fato afirmam que, embora dependa da Anvisa, a mudança deve passar, também, pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, que foi visitada pelos membros do “gabinete das sombras”.