“Games podem desafiar o neoliberalismo”, diz ao DCM sociólogo que liga Marx a videogames

Com 34 anos, o sociólogo e pesquisador marxista britânico Jamie Woodcock lançou em 2019 o livro "Marx no Fliperama"

Atualizado em 28 de junho de 2022 às 8:56
O sociólogo marxista Jamie Woodcock, 34, autor do livro "Marx no Fliperama" - Acervo pessoal
O sociólogo marxista Jamie Woodcock, 34, autor do livro “Marx no Fliperama” – Acervo pessoal

Aos 34 anos, o sociólogo e pesquisador marxista britânico Jamie Woodcock lançou em 2019 o livro “Marx no Fliperama”, que foi traduzido no ano seguinte pela editora Autonomia Literária. Ele afirma que se tornou um admirador de Karl Marx ao criticar a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em sua militância estudantil.

Com passagens pela Universidade Oxford e pela London School of Economics, Woodcock vive em sintonia com os movimentos de esquerda dentro dos videogames. Apoia a sindicalização dos trabalhadores no setor de jogos, que enfrentam a precarização do trabalho com salários cada vez menores e desiguais, além do famoso ‘crunch’ – que é o processo de desenvolvimento ininterrupto de um jogo eletrônico na véspera do lançamento.

O DCM procurou Jamie Woodcock para uma entrevista exclusiva. Ele contou que é fã do jogo de RPG Disco Elysium, do estúdio britânico ZA/UM, que aborda abertamente temas como a esquerda, o anarquismo e o fascismo em um enredo investigativo.

Diário do Centro do Mundo: Você disse no livro “Marx no Fliperama” que a indústria dos videogames e a indústria das armas são próximas. Afirma que elas cresceram juntas principalmente nos EUA. É possível desenvolver outro tipo de indústria com outros temas, fora do complexo militar dos Estados Unidos?

Jamie Woodcock: Há uma longa ligação histórica entre os videogames e o complexo industrial militar. Isso pode ser visto no nascimento dos videogames em hardware que pertencia ao setor militar e nas conexões organizacionais que continuam até hoje.

É perfeitamente possível desenvolver outro tipo de indústria sem a conexão com o complexo militar dos EUA. A indústria de videogames evoluiu muito nos últimos 50 anos e agora há uma grande variedade de jogos.

Mas, mesmo que a ligação com os militares americanos tenha sido rompida, os videogames continuam a ser feitos dentro de um conjunto de relações sociais que continuam a ser moldadas pelo militarismo e pelo colonialismo. Isso acontece direta ou indiretamente.

Com a onda de organização dos trabalhadores na indústria, também houve tentativas de tomar como temas os sindicatos ou a organização, assim como os jogos que foram feitos para ou com sindicatos.

Vou citar alguns exemplos: “Super Anti-Union Campaign Simulator”, foi desenvolvido por membros da CWA no Meow Wolf Collective. Da mesma forma, houve jams [maratonas de desenvolvimento] de jogos como o Notes from Below no Reino Unido em associação com o braço Game Workers do IWGB.

DCM: Você acha que os indiegames [jogos independentes] são outra forma de criar games sem a ideologia do neoliberalismo?

JW: Os jogos independentes podem oferecer uma distância dos estúdios AAA [a chamada grande indústria] para experimentar diferentes maneiras de fazer jogos. Muitos jogos independentes são muito diferentes de games de esportes licenciados anualmente [como FIFA] ou do último título de uma franquia FPS [jogos de tiro em primeira pessoa].

A indústria dos videogames sempre teve uma dinâmica de resistência e captura, desde os primeiros desenvolvedores a fazer jogos. Isso continua até hoje, com pessoas modificando jogos e tornando-os fora das estruturas tradicionais da indústria.

Veja Counter-Strike, DOTA ou League of Legends, por exemplo, que começaram como mods [modificações ilegais] de jogos existentes. No entanto, o capitalismo provou ser muito bem-sucedido em recapturar a criatividade e a dinâmica subversiva de outras formas de fazer jogos.

Jogos independentes não são uma solução para o problema da ideologia neoliberal ou capitalista, mas podem ser uma parte da experimentação com o que culturas ou práticas alternativas poderiam ser.

Disco Elysium
Disco Elysium. Foto: Divulgação

DCM: O que você acha de jogos como Disco Elysium ou Papers Please? Eles representam a visão esquerdista na indústria do jogo?

JW: Acredito que Disco Elysium é uma obra-prima na forma de um jogo. É um jogo que entra em política sem forçar uma perspectiva do jogador. Essa é uma diferença importante entre “jogos políticos” e jogos com política. Os primeiros são muitas vezes explícitos sobre ter um objetivo político – e, portanto, falam para um público que já está interessado nessa política.

Isso tem uma utilidade, é claro, mas é mais limitado do que os jogos que têm a política passando por eles. Disco Elysium é um jogo de contradições que não tem divisões claras. Ele tem uma das representações mais eficazes de saúde mental que já vi em um jogo, trazendo novas mecânicas e um enredo poderoso.

O processo de jogar o jogo também é um processo de reflexão sobre a política de Revanchol [cidade do game] e as pessoas que você conhece. Para mim, tem sido o ponto de partida de muitas discussões sobre política e jogos, mesmo muito tempo depois de realmente jogar o game.

Será muito interessante ver o que eles farão com o próximo jogo – o desafio do segundo álbum de uma banda.

DCM: O que você acha do movimento dos sindicatos e de sindicalização dos trabalhadores de jogos, como temos nos meios de comunicação americanos como o Kotaku e seus jornalistas?

JW: Acho que o movimento de sindicalização dos trabalhadores na indústria é um dos mais empolgantes nos videogames em muito tempo. Participei do apoio aos trabalhadores no Reino Unido para se sindicalizar, bem como rastreando instâncias de ação coletiva na indústria com a Game Worker Solidarity.

Acho que isso tem o potencial de remodelar a indústria, mudando a forma como os jogos são feitos, os tipos de jogos que são feitos e a cultura da indústria.

Isso foi muito ajudado por uma mídia solidária que também passou recentemente por uma onda de sindicalização. Espero que também possa servir de inspiração para que outros grupos de trabalhadores também se organizem.

DCM: ‘Marx no Fliperama’ é um livro de 2019. Você acha que movimentos como o GamerGate, movimentos de extrema direita, querem manter as estruturas neoliberais da indústria de videogames?

JW: A extrema direita organizou-se online de forma muito mais eficaz do que a esquerda há algum tempo. De certa forma, os movimentos populares de direita hoje foram desenvolvidos em espaços online, antes de saírem para as ruas. Claramente, a extrema direita não seria a favor de movimentos progressistas para mudar a estrutura da indústria de videogames, e partes disso podem ser vistas no GamerGate.

No entanto, meu argumento em “Marx no Fliperama” não é que os videogames sejam ruins ou que a violência deva ser removida dos jogos. Em vez disso, os videogames podem ser um meio para expressar mais do que atualmente. Crítica não é o mesmo que censura.

A crítica em “Marx no Fliperama” vem de mim como jogador de videogames, não como alguém que quer empurrar apenas uma maneira de pensar sobre jogos. Isso significa pensar nos tipos de comunidades que estamos criando e que efeito elas têm no mundo.

Trata-se de lutar por videogames – tanto como forma de trabalho quanto de lazer – que podem ser parte do pensamento sobre formas alternativas de organizar a sociedade, bem como algo com o qual podemos relaxar no final do dia.

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